Nem mesmo as dificuldades impostas pela pandemia tiraram o foco da jovem curitibana Mariana Chevalier, de 16 anos, e impediram que a atleta concretizasse, até o momento, o maior feito de sua curta carreira nas águas. No último dia 30 de julho a nadadora concluiu os 33,3 quilômetros do Canal da Mancha e se tornou a brasileira mais jovem a realizar o feito.
A travessia entre o braço de mar que liga o sul da Inglaterra ao norte da França foi concluída em 11 horas e 55 minutos em águas frias, com uma média de 15 graus. Anteriormente, a brasileira mais jovem a realizar o feito era a maratonista aquática paraibana Kay France, que realizou a mesma façanha em 1979, aos 17 anos.
A rotina intensa dos seis meses de treinamentos, considerado um tempo relativamente baixo para um desafio de tamanha dimensão, precisou ainda ser interrompida algumas vezes a partir do mês de março. Com as medidas de restrição impostas pela Covid-19, muitos clubes e academias fecharam as piscinas, fazendo com que a atleta curitibana tivesse de contar com a solidariedade de amigos e conhecidos para poder continuar sua preparação e não perder o ritmo.
Utilizando piscinas particulares de amigos, conhecidos e até mesmo pequenos trechos da Represa do Passaúna, Mariana conseguir dar sequência aos exercícios, que chegaram a ser interrompidos por três semanas. “Durante essa pausa fiquei fazendo apenas atividades aeróbicas em casa, pois fechou absolutamente tudo”, relembra.
Atleta do Clube Curitibano, ela se especializou nas provas de longa distância. A nadadora começou sua carreira nas piscinas aos 8 anos de idade, passando depois para as maratonas e posteriormente para a ultramaratona aquática, em longas distâncias no mar aberto. Competidora experiente, apesar da pouca idade, a curitibana conta que a ideia de realizar a lendária prova surgiu de uma vontade particular de superar marcas e depois de conversar com outros atletas que já tinham concluído a travessia.
“Estava decidida que queria tentar fazer”, diz. Depois de concluir uma competição com uma distância de 36 quilômetros na Ilha do Mel, em 2019, a jovem se sentiu mais confiante para mais esse desafio. “Essa foi a minha primeira prova com uma distância maior. Essa decisão de fazer o Canal da Mancha foi mais por uma sequência de oportunidades que foram aparecendo. Alguém comentou comigo, depois recebi o convite para acompanhar um nadador. Eu iria acabar fazendo de um jeito ou de outro”, afirma.
Com a meta definida, a nadadora teve de superar ainda aquele que foi, talvez, o maior obstáculo do projeto: a falta de patrocínio. Todos os preparativos para a travessia envolvem uma questão logística de alto custo, com passagens, hospedagens, e aluguel de barco, que individualmente custou mais de R$ 10 mil, para acompanhar a maratona aquática. Para tentar angariar fundos, Mariana montou um site para comercializar camisetas e canecas, além de uma vaquinha virtual.
Nesse momento, a solidariedade dos colegas e de muitos estranhos foi o que mais emocionou a jovem. Muitas pessoas que ela sequer conhecia se uniram pela causa e foram fundamentais para que a nadadora conseguisse levantar recursos. “Surgiu o nome de uma doadora e ninguém sabia quem era. Ao pesquisar, descobrimos que era uma mulher que não tinha relação alguma com a natação”. Isso aconteceu várias vezes ao longo da vaquinha e não apenas com apoio financeiro. “Recebi também mensagens de pessoas que vinham dizer que eu era uma inspiração. Ver toda essa mobilização foi bem bacana”, diz.
Outro fator que precisou ser superado pela atleta foi a solidão que o período de preparação em plena pandemia impôs. Acostumada a treinar em piscinas coletivas de clubes e academias com amigos e outros atletas, a curitibana se viu nos últimos meses nadando totalmente sozinha por longas horas, em uma piscina gelada o que, segundo ela, acabou dando uma desestabilizada em certos momentos.
O alívio vinha após os treinamentos, durante telefonemas intermináveis com as amigas. “Desde que comecei a competir sempre tive uma equipe do meu lado. Por mais que algumas vezes o treino regular fosse individual, a presença das pessoas próximas tornava o ambiente muito familiar”, relata. Essa, segundo ela foi a pior parte. “Cheguei a pensar em desistir um dia. Falei que não sabia se queria mais isso. Estava a um passo de desistir. Nisso, o meu técnico avisou uma amiga minha, que é quase uma irmã e ficamos quase uma hora e meia no telefone”, recorda-se. “Foi nesse momento que percebi que mesmo não tendo ninguém na piscina, nem na raia ao lado, mesmo assim as pessoas estavam me apoiando”, emociona-se.
Expectativas e incertezas
Superadas as primeiras adversidades, a chegada em território britânico aconteceu no dia 11 de julho, quando Mariana e toda a equipe tiveram que se isolar por 14 dias em razão da quarentena obrigatória de segurança por conta da pandemia. Longe do mar e sem poder realizar o treinamento em águas abertas, a curitibana precisou mais uma vez se adaptar às dificuldades impostas pela ocasião e improvisar exercícios dentro do próprio quarto, além de uma rotina de banhos gelados para que o corpo não perdesse a adaptação às águas frias, que no Canal da Mancha chegam aos 15ºC. Passado o período de segurança, Mariana conseguiu finalmente iniciar os treinos no mar.
A partir desse momento, o desafio foi lidar com a constante ansiedade, uma vez que não havia uma data definida para iniciar a prova. As circunstâncias climáticas do local, os ventos e as condições da maré precisavam estar perfeitas. Somente depois de uma combinação desses fatores, além da liberação da guarda costeira local, é que os atletas podem iniciar a travessia. Nesse ponto, foi necessário trabalhar a questão emocional para que a falta de um dia específico para a largada não fosse um fator que causasse desmotivação. É como se você estivesse pronto para uma competição, mas não soubesse em que momento a prova vai começar. Depois de quase uma semana de espera e muita expectativa, a curitibana finalmente conseguiu entrar no mar.
A travessia
Antes de iniciar a jornada, Mariana se preparou para enfrentar as condições hostis do mar. O corpo da atleta foi coberto por uma pasta especial composta por vaselina, lanolina, protetor solar e protetor térmico, para proteger a nadadora do sol, das águas geladas e também das ferroadas de águas vivas, comuns nesse tipo de travessia. Os primeiros quilômetros foram marcados ainda por muita ansiedade e nervosismo da curitibana. As baixas temperaturas do mar, a forte correnteza e os enxames desses animais marinhos, aliás, mostraram-se um obstáculo constante ao longo de toda a travessia.
As paradas estratégicas foram organizadas de maneira escalonada para que Mariana pudesse se alimentar e se hidratar de maneira correta. As pausas duravam no máximo alguns segundos para não prejudicar o ritmo e eram feitas em mar aberto, sem que houvesse qualquer contato da atleta com o barco para não invalidar o resultado. Caso o tempo de alimentação levasse mais do que esse curto período, a força da água arrastaria a jovem por centenas de metros para trás, prejudicando todo o planejamento para a conclusão do percurso. “Você via a correnteza te jogando para trás. E aí não dava pra ficar perdendo tempo e metros dessa maneira”.
O kit de sobrevivência em alto mar era composto de água, isotônicos, café, e até canja de galinha com legumes, arroz, macarrão e frango quente, para dar uma aquecida. Batata assada com sal, chocolate e refrigerante também fizeram parte da dieta.
Além do cansaço natural que um desafio dessa dimensão impõe em certo momento a atleta se viu cercada por um enxame de águas-vivas e precisou interromper o nado por cerca de 10 minutos para tentar desviar desses animais. Apesar do cuidado, a jovem acabou levando diversas ferroadas pelo corpo, inclusive no rosto, o que foi mais um fator complicador durante o trajeto. “Lá pela sexta hora de travessia encontrei com todas aquelas águas vivas. Nesse ponto tive que parar de nadar para passar por elas. Naquele momento perdi muito ritmo”, lamenta.
Nas horas finais da prova a forte correnteza foi mais um fator complicador, fazendo com que Mariana ficasse presa, mesmo com braçadas cada vez mais intensas, colocando a conclusão da travessia em risco eminente. Mesmo vendo a costa francesa e seu objetivo a poucos quilômetros de ser atingido, a curitibana não conseguia sair do lugar. Foram quase duas horas de muito estudo e paciência até que a atleta pudesse finalmente seguir adiante, para alívio da equipe de apoio.
Neste ponto, a preparação física foi primordial para a superação de mais um obstáculo. “Eu já sabia que tinha essa diferença ali, pois quando nos aproximamos da costa francesa a correnteza muda de sentido. Fiquei nadando sem sair do lugar. Foi muito cansativa aquela parte. Foi ali que senti ombro e pernas doerem, cansaço por estar tanto tempo na água, senti a queimadura da água viva e do sol. Mas deu certo”, diz.
Superados todos os desafios, a marca histórica que já perdurava 41 anos e começou a cair por volta das 5h29 foi finalmente quebrada às 17h24 do dia 30 de julho de 2020 sob os gritos de alívio e emoção do pai, Walter Cardoso dos Santos Filho, e do treinador, Julio Wood Saldanha, que estiveram ao seu lado em todos os momentos dessa jornada. Além da atleta curitibana, o engenheiro capixaba Márcio Junqueira, de 48 anos, também completou o percurso na mesma data. Além deles, outros 37 nadadores brasileiros já completaram a travessia do Canal da Mancha.
Ao final, o cansaço deu lugar ao alívio e a certeza de que todo o esforço valeu a pena. “Eu tava exausta. Cheguei e só queria dormir. Queria que alguém me tirasse daquela água para poder descansar. Mas saiu um peso dos meus ombros em saber que todo o empenho que tanto eu quanto os meus pais, técnico e conhecidos estávamos fazendo valeu a pena. No final deu certo. Cumpri meu objetivo”, comemora.
De olho no futuro, Mariana planeja realizar outras grandes travessias, como o Seven Oceans, que são consideradas as sete travessias mais tradicionais e mais difíceis que existem. A primeira já foi superada. Mas isso, diz a jovem atleta, fica para médio prazo. No momento o maior desafio da jovem é o de qualquer adolescente normal, com foco total no vestibular e, quem sabe, uma futura carreira na área de direito. “Decidi fazer direito na semana passada, antes disso era psicologia. Daqui uma semana é capaz que mude”, diverte-se.