Este é o nono texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore, Sinclética de Alexandria, Roger de Taizé e Jalal ad-Din Rumi.
No século XI, para que uma mulher se tornasse uma líder respeitada, interlocutora de reis e papas, autora de uma vasta obra e defensora de uma profunda reforma no clero, só uma justificativa poderia ser aceita: Deus mesmo falou com ela. Hildegarda de Bingen foi tudo isso e muito mais, em um caminho que começou com visões que ela afirmou ter desde a infância. Ela dizia ver tudo à luz de Deus, através dos sentidos. E não considerou isso um privilégio para si, mas uma experiência que tinha algo a dizer a todos que se aproximam de Deus.
Para Hildegarda, “a alma é ígnea, porque aquece todas as vias destinadas ao coração e as funde em uma, mantendo-as em conjunto, para que não se separem umas das outras, e enchendo-as, para que a nenhuma delas falte qualquer coisa; e assim, com sabedoria nos seus pensamentos, ordena sabiamente todas as funções do corpo, subindo na direção de Deus graças à fé na boa e santa intenção, porque sabe ter sido enviada por ele”.
Essa ênfase na unidade, que é o fruto dessa presença divina em nós, fala muito sobre a visão de Hildegarda. Uma mulher que se dedicou a estudar temas tão variados como a medicina herbal e a reforma da Igreja, ou o orgasmo e a Trindade, não poderia ver o mundo a não ser com um olhar simbólico-sacramental, capaz de desvelar no múltiplo o uno e no que é palpável a presença do divino.
“Deus, que fez todas as coisas por um ato de sua vontade e as criou para tornar conhecido e honrado o seu nome, não se contenta em mostrar através do mundo apenas o que é visível e temporal, mas manifesta nele aquelas realidades que são invisíveis e eternas. Isto é o que me foi revelado”, escreveu Hildegarda.
O invisível se manifesta no visível, não fora dele ou à parte dele. “Como, de fato, com os olhos do corpo, o homem vê as criaturas em qualquer lugar que estejam, assim na fé pode ver Deus em todo lugar e o conhece através das criaturas, quando compreende que de todas é o criador”, afirmou a monja.
A partir da própria presença de Deus em nossa interioridade, toda a nossa vida e as nossas obras passam a ser teofânicas, isto é, a manifestá-lo, se vivemos segundo o Cristo: “Da alma o homem é iluminado como por uma faísca interna”, diz Hildegarda, e “essa torna brilhantes como faíscas as obras do homem”. O íntimo da natureza da alma é o Deus amado sobre todas as coisas – esse fogo se alastra por todas as dimensões de nossa vida.
“A alma não é carne nem sangue, mas enche uma e o outro, porque vivem com ela, porque foi criada racional por Deus, que inspirou a vida ao primeiro homem feito de lama. Por isso, a alma e a carne são uma única obra em duas naturezas. Ao corpo humano a alma produz o ar no ato de pensar, o calor no unir as forças, o fogo em apoiá-lo, a água no fazê-lo crescer, a fecundidade no germinar, como foi estabelecido desde a criação do primeiro homem; e está em cada parte sua, em cima e embaixo, em torno e dentro do corpo. Assim é feito o homem”, escreveu a profetisa.
Hildegarda entendia que tudo o que emerge de bom no coração humano brota dessa presença. Emprestando a sua voz a Deus, ela escreveu: “Eu infundo em vocês o conhecimento de vocês mesmos, para que saibam o que são, porque sou eu que os criei e que estou em todos vocês”. Hildegarda não cansa de enfatizar essa presença de Deus por toda a parte: “Deus está em todas as criaturas e acima de todas, porque não se dá nele início nem fim”.
“Que bem posso fazer sem Deus? Nenhum”, reconhecia ela. Daí que o “escudo indestrutível” que protege de todos os vícios é a humildade, “dulcíssimo bem”. Não há justiça e retidão sem a humildade como ponto de partida. É preciso “a pobreza de espírito, que não busca a vanglória ou a arrogância do coração, mas ama a simplicidade e a sobriedade de espírito, atribuindo suas obras justas não a si mesmo, mas a Deus”.
Assim, ao mesmo tempo em que Hildegarda peregrinava pela Europa Central instando a Igreja a reformar-se e o clero a converter-se, ela compreendia que as obscuridades faziam parte do caminho. Comparando Cristo ao sol e a Igreja à lua, ela escreveu: “Assim como a lua é feita de tal maneira que sempre cresce e decresce, mas não arde por si mesma, a menos que seja iluminada pela luz do sol, assim também a Igreja tem um círculo de movimento: seus filhos, às vezes, surgem no aumento de virtudes e, por vezes, declinam por comportamento inconstante ou feridos por forças exteriores”.
Mais do que conquistada, porque não é mérito humano, a retidão é recebida. “Quando de fato o ser humano recebe a retidão, abandona a si mesmo para saborear e beber as virtudes e recebe força, como as veias do bebedor se enchem de vinho”, escreveu Hildegarda.
É dessa retidão, que opera a justiça, realiza o amor e brota da faísca de Deus em nós, que se abre a possibilidade da unidade, o centro da visão de Hildegarda. Como os anjos, “nuvem ardente em que há uma multidão resplandecente que tem uma vida concorde em uma só vontade e em uma só união”, somos chamados a unir o nosso querer ao de Deus e ligarmo-nos uns aos outros como se fôssemos um, “unidos em um único princípio, como um só corpo”.
Hildegarda de Bingen (1098-1179) foi uma monja cristã alemã. Fundadora dos mosteiros beneditinos de Rupertsberg e Eibingen, foi poeta, compositora, pregadora, teóloga e naturalista. Foi reconhecida como doutora da Igreja em 2012. Entre as suas principais obras, estão o Scivias, o Liber vitae meritorum e o Liber divinorum operum.
Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.