Este é o sexto texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich e Rabindranath Tagore.
Nos primeiros séculos do cristianismo, uma porção de cristãos e cristãs escolheu fazer do deserto o seu lar, dispostos a um encontro mais nu consigo mesmos e com Deus. A experiência dessas pessoas, que a tradição cristã chamou de padres e madres – ou pais e mães – do deserto, está na raiz do monaquismo cristão. O seu ensinamento, além de ser transmitido de geração em geração a seus seguidores, foi recolhido sob o título de Apoftegmas dos padres do deserto.
Dos 131 nomes representados nos Apoftegmas, três são femininos: Teodora, Sara e Sinclética. Apesar da evidente disparidade, a sua inclusão na coletânea atesta que essas mulheres eram tidas como mestras espirituais à altura de seus colegas monges, como Antão, Macário, Moisés e Cassiano. O seu ensinamento compõe o patrimônio místico legado pela experiência do deserto, de que é devedora toda a espiritualidade cristã do Ocidente e do Oriente, e que vê no centro do discipulado cristão a vigilância, o discernimento e a humildade.
No deserto, sem fugir do encontro consigo mesmo, monges e monjas perceberam pela própria experiência que a vida é sempre mais complexa do que parece. Ela escapa a todo dualismo, denunciando a ingenuidade de considerar as coisas “religiosas” boas e as não “religiosas” más. Diante disso, o discernimento se faz necessário. A própria opção pela vida monástica não foge disso. “Há muitos que vivem nas montanhas e se comportam como se estivessem na cidade – e assim perdem seu tempo. É possível viver a sós na nossa mente vivendo em meio à multidão e é possível para alguém que vive a só viver em meio à multidão de seus próprios pensamentos”, ensinou amma Sinclética.
O mal pode se abater sobre nós sob várias vestimentas – daí a importância da vigilância. “Muitas são as artimanhas do diabo. Se ele não consegue perturbar nossa alma através da pobreza, ele sugere as riquezas como uma atração. Se não vence por via dos insultos e desgraças, ele sugere o louvor e a glória. Se é superado pela saúde, adoece o corpo. Não tendo sido capaz de seduzi-lo com os prazeres, tenta derrubá-lo pelos sofrimentos involuntários”, dizia a anacoreta.
Outra madre do deserto, Teodora, contava uma parábola que ilustrava bem essa realidade: “Havia um monge que, devido ao seu grande número de tentações, disse: ‘Vou embora daqui’. Enquanto calçava as sandálias, ele viu outro homem que também calçava suas sandálias. Esse outro monge lhe disse: ‘É por minha causa que você vai embora? Porque irei antes de você aonde quer que você vá’”.
Sinclética via claramente que a vida monástica não era garantia de salvação ou santificação para ninguém. “Nós somos como aqueles que navegam num mar calmo e os seculares são como aqueles que navegam num mar agitado”, dizia. “Sempre planejamos a nossa direção de acordo com o sol da justiça, mas pode acontecer frequentemente que o secular seja salvo em meio à tempestade e à escuridão, pois se mantém vigilante como deve, enquanto nós afundamos por causa da negligência, mesmo estando em um mar calmo, porque abandonamos a direção da justiça”.
Qual é o segredo para não cair nessas armadilhas do mar, seja tempestuoso ou calmo? Os padres e madres do deserto não tinham dúvida: é a humildade. “Assim como não é possível construir um navio sem pregos, é impossível ser salvos sem a humildade”, ensinava Sinclética.
Teodora, por sua vez, contava: “Havia um anacoreta que era capaz de expulsar demônios. Ele perguntou a eles: ‘O que faz vocês irem embora? É o jejum?’ Os demônios responderam: ‘Não comemos nem bebemos’. ‘São as vigílias?’ Eles replicaram: ‘Não dormimos’. ‘É a separação do mundo?’ ‘Vivemos no deserto’. ‘Que poder, então, os manda embora?’ Eles responderam: ‘Nada pode nos vencer a não ser a humildade’”.
É na humildade que se sustenta o caminho do discipulado. Daí o alerta de Sinclética a respeito dos perigos de uma vida monástica caracterizada por certo fundamentalismo. “Há um ascetismo que é determinado pelo inimigo e praticado por seus discípulos. Como diferenciar o ascetismo divino e real da tirania do demônio? Claramente, através de seu equilíbrio. Use sempre uma única regra de jejum. Não jejue quatro ou cinco dias para então quebrar o jejum com qualquer quantidade de comida. De fato, a falta de proporções sempre corrompe”, ensinava ela, completando: “Enquanto estivermos no mosteiro, a obediência é melhor que o ascetismo. Este ensina o orgulho; aquela, a humildade”.
A humildade é a porta para a conversão do coração. Por isso, Sinclética orientava, fazendo referência à parábola do fariseu e do publicano, narrada por Jesus no Evangelho de Lucas: “Imite o publicano e você não será condenado com o fariseu. Opte pela mansidão de Moisés e você verá o seu coração, que é uma rocha, transformado em uma fonte de água viva”.
Esse coração renovado, capaz de amar, consegue enxergar a humanidade do outro como irmã, a despeito de toda a sujeira que possa se depositar sobre a sua superfície. “Por que odiar a pessoa que o fez sofrer? Não foi ela quem fez o mal, mas o diabo. Odeie a doença, mas não o adoecido”, dizia ela, com todo o cuidado de não exigir o que não pode ser exigido: “É bom não se enraivecer, mas se isso tiver que acontecer, o Apóstolo o proíbe de dar um dia inteiro a essa paixão, pois diz: ‘Que o sol não se ponha sobre a sua ira’ (Ef 4,26)”.
A humildade pode ser um caminho difícil, mas não há outro para tornar o nosso coração mais dócil. “Se alguém que tem uma casa em ruínas recebe visitas, faz mal a elas devido ao estado de sua casa. É o mesmo caso daquele que ainda não construiu uma morada interior; ele prejudica quem vem a ela”, ensinou Sinclética. A vigilância, o discernimento e a humildade não são o ponto de chegada: são os passos que abrem espaço em nosso coração para fazer aquilo que os monges e as monjas aprenderam muito bem a fazer – acolher, hospedar, cuidar, atitudes tão necessárias para tornar o mundo mais habitável e, assim, mais parecido com o coração de Deus.
Sinclética de Alexandria (c. 270-c. 350) foi uma anacoreta cristã egípcia. Seus ensinamentos foram recolhidos com o de outros monges e monjas nos Apoftegmas dos padres do deserto.
Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).