Este é o quinto texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa e Juliana de Norwich.
Um homem queria encontrar Deus. Decidiu, assim, deixar a sua família e viver como eremita. “Quem me retém por tanto tempo na ilusão da vida familiar?”, perguntava-se ele. Deus lhe sussurrou: “Eu!”, mas ele não ouviu. Olhando a esposa que dormia com o bebê acalentado junto ao peito, questionou em seu coração: “Quem é você que me enganou com os sentimentos?” Uma voz lhe respondeu: “Eles são Deus!” O aspirante a asceta, porém, não entendeu. Deus insistiu: “Pare, seu tolo! Não abandone a sua casa!” Mas os ouvidos do homem estavam fechados e ele cruzou o limiar da porta. Deus, então, suspirou: “Por que o meu servo me abandona para ir em busca de mim?”
Essa parábola, narrada por Rabindranath Tagore, sintetiza bem a mística desse poeta indiano, membro da Brahmo Samaj, uma comunidade religiosa que surgiu como um movimento reformador dentro do hinduísmo, de orientação monoteísta, e que depois se consolidou como uma religião à parte. Tagore foi uma figura chave no intercâmbio cultural entre a Europa e a Ásia no início do século XX – um exemplo disso é que foi o primeiro não-europeu a ser laureado com o Nobel de Literatura.
Para o poeta, Deus só pode ser encontrado no cotidiano e na criação, quando aprendemos a enxergar as coisas mais simples que estão ao nosso redor com olhos renovados, como se fosse a primeira vez. Em outras palavras, como diz um de seus versos, “Deus se cansa dos grandes reinos, jamais das pequenas flores”.
Em uma imagem mais forte e radical, no mesmo sentido, escreveu: “Deixa a cantilena, o cântico e a recitação de contas de rosário! / A quem veneras neste recanto / solitário e escuro de um templo de portas fechadas? / Abre teus olhos e vê / que teu Deus não está diante de ti! / Ele está onde o agricultor está lavrando o chão duro / e onde o pedreiro está rachando pedras. / Ele está com eles no sol e na chuva, / e sua roupa está coberta de poeira. / Remove teu manto sagrado / e, como Ele, desce para o chão empoeirado!”
Não se trata de desqualificar a religião organizada ou as práticas de piedade desse ou daquele grupo, mas de alertar para que não se compartimente Deus em um recanto isolado da vida. Pelo contrário, é preciso abrir os olhos e apurar os ouvidos para reconhecer o seu rosto e ouvir a sua voz em meio à poeira e ao suor da vida concreta, quando o amor se manifesta – sob o risco de se tornar cego e surdo para a presença de Deus ao nosso redor e de tornar a prática religiosa uma casca vazia. “Enquanto Deus espera que o seu templo seja feito de amor, o homem traz pedras”, dizia Tagore.
A capacidade de prestar atenção a essa presença exige manter viva a sede de Deus, cuidando para que a avidez do consumismo ou a religião degenerada em ideologia não nos anestesiem. O poeta alertava que o homem “afunda nas areias movediças do tédio / entristecido em paredes estreitas, sem céu aberto / perdido nas muitas estradas / entre arranha-céus de coisas inúteis”.
Essa condição não deixa espaço para hospedar a silenciosa visita de Deus. “Deixa-me somente aquele pouco com o qual possa chamar-te de meu tudo. / Deixa-me somente aquele pouco com o qual possa sentir-te em toda parte / e oferecer-te o meu amor a todo instante”, escreveu Tagore.
Ele expressou essa sede de Deus neste poema: “Fizeste-me sem fim, pois esse é teu prazer. / Esvazias continuamente este frágil vaso, / e de novo sempre o enches de vida fresca. / Levaste por montes e vales esta pequena flauta de bambu, / e nela sopraste melodias eternamente novas... / Ao toque imortal de tuas mãos, / meu pequeno coração perde seus limites na alegria, / e faz nascer inefáveis expressões... / Teus dons infinitos vêm a mim / apenas sobre estas minhas tão pequenas mãos. / Passa o tempo, continuas derramando, / E sempre há lugar a preencher...”
Em uma relação verdadeira com Deus, despida de constrições ideológicas, a liberdade desempenha um papel fundamental. É preciso, dizia Tagore, passar da lei ao amor, da disciplina à libertação – afinal, “Deus procura companheiros e reivindica amor; o diabo procura escravos e reivindica obediência”.
Liberdade e amor andam de mãos dadas, porque “essencialmente, o homem não é um escravo nem de si mesmo nem do mundo; ele é um amante”. Assim, a busca de Deus não é um fardo, mas um prazer. “Liberdade, para mim, só é completa quando o fruto da paixão e o fruto da devoção são um só”, afirmou o poeta.
Esse amor se manifesta no serviço ao outro e, assim, se torna encontro com Deus – como mostra a parábola do aspirante a eremita ou este outro poema de Tagore: “Eu dormia / e sonhava / que a vida era alegria. / Acordei / e vi que a vida era serviço. / Servi / e vi que o serviço era a alegria”.
O amor, afinal, se é manifestação de Deus, é o próprio conhecimento da verdade. “Os fatos que causam desespero e escuridão são mera névoa, e quando através da névoa a beleza emerge em fulgores momentâneos, nós nos damos conta que a paz é a verdade, em vez do conflito, que o amor é a verdade, em vez do ódio, e que o uno é a verdade, em vez da multiplicidade desconectada”, disse Tagore. “O amor é o sentido último de tudo ao nosso redor. Não é um mero sentimento. É a verdade. É a alegria que está na raiz de toda a criação”.
Rabindranath Tagore (1861-1941) foi um poeta, dramaturgo, músico e pintor bramoísta indiano. Em 1913, se tornou o primeiro não-europeu a ser laureado com o Nobel de Literatura. Compôs os hinos nacionais da Índia e de Bangladesh. Ficou conhecido também como ativista pela independência da Índia.
Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).