“O bom samaritano”, de Vincent Van Gogh (1890).| Foto: Domínio público
Ouça este conteúdo

Este é o primeiro texto de uma nova série sobre virtudes que o Sempre Família começa a publicar. A cada sexta-feira, uma nova virtude será abordada. Damos início à série falando do amor.

Entre os séculos IV e V, as regiões desertas do Egito, da Síria e da Palestina se tornaram o lar de cristãos e cristãs à procura de um encontro mais profundo consigo mesmos e com Deus – a tradição cristã os chamou de padres e madres do deserto. Um deles era o abba Agatão, que certa vez disse: “Se eu encontrasse um leproso e pudesse dar a ele o meu corpo e tomar o seu, eu seria muito feliz”. O discípulo que recolheu esse dito comentou em seguida, ao escrevê-lo: “É isso a perfeita caridade”.

Séculos depois, mais precisamente em 1884, um missionário católico belga chamado Damião de Veuster contraiu lepra, 11 anos depois de se prontificar a servir a população de Kalaupapa – uma península da ilha de Molokai, no Havaí, que servia como local de isolamento forçado dos que contraíam lepra no arquipélago. Ele ficou feliz. Deu a notícia durante uma homilia, ao começar uma frase com: “Nós, os leprosos...” Agora ele tinha se tornado realmente um com o povo para o qual vivia. “É isso a perfeita caridade”, diria o discípulo de Agatão.

“Caridade” é uma palavra que costuma soar mal aos ouvidos contemporâneos, habituados a relacioná-la apenas à esmola, à doação de alimentos e à contribuição para instituições beneficentes. Não é esse o seu sentido mais profundo. Caritas, palavra latina que vem de carus – caro, querido, amado –, foi o termo usado como correlato de um dos termos gregos que servem para falar do amor, ágape. Trata-se, afinal, do amor. Que amor?

CARREGANDO :)

Amores e amores, mas sempre o amor

CARREGANDO :)

“O amor é um dos temas mais antigos e tradicionais da filosofia. Um dos primeiros e principais diálogos de Platão, O banquete, versa justamente sobre esse tema”, afirma Pedro Ribeiro, professor de Filosofia no Colégio Palas e no Colégio Santa Mônica, no Rio de Janeiro.

“A grande conclusão platônica é que o amor possui duas características essenciais. Em primeiro lugar, o amor é sempre carência, falta, incompletude – ninguém busca o que já possui. O amor é justamente uma procura constante pelo amado. Mas o que o ser humano procura no amor? Para Platão, assim como a fome é uma busca causada pela falta de alimento, o amor é uma busca do belo, é uma carência da beleza. Em segundo lugar, o amor é também sempre anseio por perenidade, duração e estabilidade. Quem ama quer estar junto do amado o máximo possível”, explica Ribeiro.

Em O banquete, Platão usa o termo eros para falar do amor – o que não significa falar de uma atitude oposta à caridade, à ágape, tradicionalmente mais relacionada a um amor que não pensa no próprio bem, mas apenas no bem do outro. O que chama a atenção no dito de Agatão que abre esse texto, tanto quanto a sua disposição em trocar de corpo com um leproso, é a sua declaração de que isso lhe faria feliz. Curiosamente, em sua primeira encíclica, que tem justamente como título Deus caritas est (“Deus é caridade”), o papa Bento XVI chegou a dizer que o amor de Deus “pode ser qualificado sem dúvida como eros, e, no entanto, é também e totalmente ágape”.

“Na realidade, eros e ágape – amor ascendente e amor descendente – nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral”, escreveu Bento XVI. “Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente – fascinação pela grande promessa de felicidade –, depois, à medida que se aproxima do outro, fará cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, se preocupará cada vez mais com ele, se doará e desejará existir para o outro. Assim se insere nele o momento da ágape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom”.

Publicidade

A síntese das virtudes

Talvez nenhuma outra virtude tenha sido proposta como a síntese de todas as outras como o amor. “Desses dois mandamentos” – do amor a Deus e do amor ao próximo – “dependem toda a Lei e os profetas”, propôs Jesus de Nazaré (Mt 22,40). Agostinho de Hipona, quatro séculos mais tarde, disse o mesmo de outra forma: “Ame e faça o que você quiser”, já que no amor cabe somente o bem do próximo. Ainda, nas escrituras cristãs, nenhuma outra virtude mereceu ser identificada com o próprio Deus, como faz o autor da Primeira Carta de João: “Deus é amor” (1Jo 4, 8.16). Um hino cristão latino do século VIII colheu essa intuição de modo singular: “Onde está o amor e a caridade, Deus aí está”.

Karol Wojtyła, que mais tarde se tornaria o papa João Paulo II, registrou em um poema em sua juventude a sua experiência de descobrir no amor uma síntese de sentido: “O amor explicou-me todas as coisas, / O amor resolveu-me tudo – / Por isso admiro este Amor / Onde quer que Ele se encontre”. O amor, portanto, desvela sentidos – esclarece, em vez de cegar, como diz o dito popular segundo o qual o amor é cego. “O amor não é cego. Ele tem os olhos do Eterno”, escreveu a filósofa e poeta russo-francesa Raïssa Maritain. Antônio de Pádua, o pregador franciscano do século XIII, poderia complementar: “O olho da alma é o amor”.

Em outras palavras, vemos o que amamos – aquilo que não amamos se torna para nós indiferente, invisível. Da adesão ao amor decorre a nossa forma de agir. Por isso o papa Francisco diz que “a moralidade é sempre uma consequência”, enquanto o filósofo francês André Comte-Sponville destaca que “o amor não se comanda, pois é o amor que comanda”.

Aí está o sentido de dizer que o amor sintetiza todas as virtudes. “O amor é uma virtude maravilhosa. É simultaneamente o meio e o fim, o movimento e a meta, o caminho que leva a si mesmo”, afirmou Francisco de Sales, bispo de Genebra no século XVII. Toda outra virtude é a sua manifestação em uma determinada dimensão. Outro padre do deserto, Teodoro de Ferme, dizia que “não há outra virtude a não ser a de não desprezar” – cada uma delas só pode ser vivida como expressão do importar-se com o outro, de que o outro nos é caro (daí a “caridade”). Ou enxergamos o outro, ou enxergaremos apenas a nós mesmos, por mais bem comportados que pareçamos.

Perceber-se companheiro de humanidade

Segundo o teólogo Jefferson Zeferino, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a bíblia cristã, em linha com a fé judaica, compreende como sagrado o amor ao próximo. “No decorrer da história cristã isso foi traduzido de muitas maneiras. Entre elas está o conceito de co-humanidade cunhado por Karl Barth. Para ele, a condição humana só se efetiva ao se ser-com-o-outro: aquele que não existe em co-humanidade não é humano de forma alguma”, explica Zeferino. “De modo semelhante, o mártir luterano Dietrich Bonhoeffer, ao enfatizar o caráter encarnacional da ética cristã à luz de Jesus de Nazaré, aponta para uma humanidade relacional na exigência de ser-para-os-outros”.

É precisamente em vista de seus efeitos humanizadores que o sociólogo e crítico literário Antonio Candido defendia a literatura como um direito humano fundamental. “Para Candido, a literatura opera como forma de expressão de um determinado conjunto de percepções e valores. Isto é, ela manifesta a visão de mundo e as emoções de determinados indivíduos e grupos, garantindo a expressão e o registro de determinadas experiências humanas”, esclarece Maria Isabel Bordini, professora colaboradora do departamento de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). “Assim, por meio da literatura temos acesso a formas de viver, sentir e pensar que, a princípio, nos seriam alheias”.

De fato, o amor se dá num narrar-se, pois se dá em uma história de envolvimento com o outro – mesmo os padres do deserto tinham por intuito mergulhar na própria interioridade para, no conhecimento da própria miséria, que nos irmana com o outro, deixar emergir a compaixão. Daí a dificuldade de amar em meio ao que o papa Francisco, por exemplo, chama de “cultura do descartável”. “Segundo a visão do pensador polonês Zygmunt Bauman, no caso específico das relações afetivas, o que há é uma redução do amor, no seu sentido mais profundo e genuíno, ao mero desejo. Em outras palavras, no contexto geral de uma sociedade regida pelo consumismo desenfreado, o amor se torna um mero produto – uma mercadoria, como todas as outras”, explica Ribeiro.

Esse, sim, é um amor cego, ao contrário do amor que vê – do amor que é em si mesmo um conhecimento, como definiu Gregório Magno no final do século VI. É o amor que se torna seu oposto: o abuso. Ao contrário, o amor que se compreende como afirmação do valor do outro “é a única força capaz de unificar as coisas sem as destruir”, como dizia o teólogo e filósofo Pierre Teilhard de Chardin. Afirmando a preciosidade do outro, o amor desvela a sua verdade e assim abre espaço para a comunhão. “A verdade manifestada é o amor. O amor realizado é a beleza”, escreveu, no começo do século XX, o teólogo russo Pavel Florenskij. Talvez essa seja a beleza que, como via Platão, o amor busca incessantemente – a beleza da comunhão, a beleza de, sem nunca o anular, tornar-se um com o outro.