Detalhe de “Judite” (1840), de August Riedel.| Foto: Domínio público
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Ariano Suassuna deu o título de “A inconveniência de ter coragem” ao primeiro ato de sua peça A pena e a lei. O ato termina com a personagem Cheirosa sintetizando o que aconteceu com Vicentão, Benedito e Pedro: “Os três procuraram tanto / sua coragem provar! / Perdeu-se a pouca que tinham / e a mulher pra completar. / Provei que é inconveniente / ter a fama de valente, / difícil de carregar!”

Como toda virtude, a coragem não se presta a ser ostentada. Simão Pedro, segundo os quatro evangelhos canônicos do cristianismo, aprendeu isso da pior maneira: poucas horas depois de ter dito a Jesus que o seguiria até a morte, negou três vezes que o conhecia para se safar.

Por outro lado, alçar a exemplos de coragem aqueles que à primeira vista parecem tão chãos e prosaicos é um dos temas principais da obra de J. R. R. Tolkien. Em um mundo habitado por elfos, magos e orcs, quem brilha pela coragem são os pequenos hobbits, os mais apegados à leveza da vida e os mais alheios a todo o jogo de poder que acontece na Terra Média. Gandalf, que acaba se dando conta de que “são as pequenas coisas boas feitas por pessoas comuns que mantêm afastada a Escuridão”, dirá do protagonista de O hobbit: “Por que Bilbo Bolseiro? Porque ele me dá coragem”.

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Coragem meditada

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“A coragem não é ausência de medo. É justamente uma forma de enfrentar o medo – uma forma organizada de enfrentar o medo”, afirma a psicóloga Andreia Moessa de Souza Coelho. “O medo a que me refiro é um estado de alerta diante de alguma ameaça, que pode ser inclusive o julgamento dos outros. E coragem é a capacidade de enfrentarmos o medo, de forma pensada. Não pode ser comparada a atos impulsivos do tipo atravessar a rua de olhos fechados. A coragem demanda um saber de si, um olhar crítico em relação à realidade e uma decisão ousada que aponte para soluções”.

Uma atitude de petulância diante de riscos sérios dificilmente merecerá o nome de coragem. Como mostram Simão Pedro e Bilbo Bolseiro, não se trata de se imaginar um super-herói. Tampouco se necessita de coragem para atacar outras pessoas na internet. Pelo contrário: quando a nossa tendência é ser grosseiro e resolver as coisas no grito, precisamente então é que é preciso coragem para optar pelo diálogo.

A coragem está, portanto, associada a essa característica de ir contra a correnteza. É o que expressa a conhecida passagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia”.

Contra a correnteza do comodismo

Como já ficou evidente, porém, não se trata de nadar contra a correnteza só para contrariar ou, ainda, para avançar contra moinhos de vento. Aquilo que brilha na coragem não é tanto a disposição ao risco quanto a razão que motiva alguém a se arriscar. A coragem não se expressa, portanto, quando eu me apresento como maior que o risco, mas quando através da disposição ao risco manifesto que o que é verdadeiramente importante não sou eu nem o risco, mas aquilo ou aqueles que desejo proteger, servir ou defender.

“Os historiadores gregos e romanos da antiguidade viam a história como uma sucessão de exemplos virtuosos e viciosos das pessoas, especialmente as de grande relevância política e militar, e se referiam frequentemente a feitos heroicos em batalhas”, explica o historiador Rafael de Mesquita Diehl. “É fato, contudo, que essa concepção ainda estava atrelada a uma coragem triunfalista, vinculada à sobreposição de um grupo humano sobre a dignidade de outro grupo. Esses exércitos de feitos heroicos perpetrados pela memória também promoveram saques, estupros, execuções e escravidão”.

Tudo isso deixa muito claro que a coragem, entendida de forma isolada, não diz muita coisa – o ensaísta inglês G. K. Chesterton, aliás, dizia que, quando as virtudes são isoladas umas das outras, elas enlouquecem. C. S. Lewis, por sua vez, escreveu que “a coragem não é simplesmente uma das virtudes, mas a forma que toda virtude toma no ponto em que é testada”. E como o fio que une as miçangas das virtudes é o amor, a primeira e a principal correnteza que a coragem precisa vencer é a do nosso egoísmo, do nosso ensimesmamento, da nossa omissão diante do sofrimento do outro.

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A intrepidez do amor

Amar e ser amado são experiências que estão na raiz da verdadeira coragem, como afirma o Tao Te Ching: “Ser profundamente amado por alguém te dá força, enquanto amar profundamente alguém te dá coragem”. Nesse sentido, Diehl menciona como exemplo de coragem o presbítero ucraniano Emiliano Kovch, casado e pai de seis filhos, declarado “justo entre as nações” pela comunidade judaica em 1999 e beatificado pela Igreja Católica em 2001.

“Durante a ocupação soviética na Ucrânia entre 1939 e 1941, quando chegaram na região as tropas da Alemanha nazista, Kovch não caiu no jogo simplista de alguns de seus compatriotas que viam os nazistas como libertadores do jugo soviético, pois identificava naquele regime a mesma violação às leis divinas e humanas que caracterizava a dominação anterior”, conta o historiador. “Tal convicção ficou evidenciada quando ele se dirigiu a uma sinagoga incendiada pela SS nazista, dispersando os algozes e ajudando a salvar as vítimas. A ajuda dada por Kovch aos judeus, forjando certidões de batismo para despistá-los da perseguição nazista, lhe rendeu a prisão em 1942 e a sua morte no campo de concentração de Madjanek em 1944”.

Martin Luther King Jr. descreveu bem essa dinâmica, tanto com a sua experiência quanto com estas palavras: “Mesmo que tentem matá-lo, você desenvolve a convicção interior de que há certas coisas tão preciosas, tão eternamente verdadeiras, que vale a pena morrer por elas”. O escritor italiano Alessandro Manzoni também foi na veia: segundo ele, a coragem é o amor sendo intrépido. O termo, aliás, tem a sua origem no latim cor: “coração”. Zeca Baleiro, portanto, tem razão: “Eu chamo de coragem, / mas você pode dar o nome que quiser. / Se eu sobrevivi à ira dos deuses / é porque tenho um coração que bate forte”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]