Este é o segundo texto de uma série de 12 artigos que abordarão, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publicará um texto novo dessa série a cada segunda-feira. O primeiro foi sobre Bernardo de Claraval.
O país vive um contexto turbulento. A polarização se acirra e os poderes dominantes deixam entrever, sem pudor algum, suas garras totalitárias. Enquanto isso, apesar de sentir uma renovada clareza de raciocínio e de sensibilidade, uma jovem de 27 anos pertencente a uma minoria perseguida sente-se também de certa forma bloqueada, insegura e desorganizada interiormente, e decide dar início a um acompanhamento terapêutico. Ao começar a escrever um diário, por sugestão de seu terapeuta, os emaranhados dentro de si vão pouco a pouco se desenrolando – e no contato com o mistério que habita a sua interioridade, ela descobre uma fonte de ternura e de força para atravessar as sombras ao seu redor.
Estamos falando dos Países Baixos do início da década de 1940, durante a ocupação nazista, e de Esther – ou Etty – Hillesum, uma jovem de Amsterdã que optou por não fugir de sua própria interioridade, mas a encarar, a acolher e nela mergulhar, consciente de que ali palpitava a presença de uma Vida. Assim, Etty descobriu pouco a pouco que “por detrás dos matagais do meu desassossego e confusão estendem-se as largas planícies do meu sossego e entrega. Todas as paisagens estão dentro de mim”, como escreveu em seu diário.
Da disciplina, seguida à risca, de reservar um momento do dia para a quietude interior, para acessar a “corrente subterrânea da vida”, brotou uma contínua existência relacional, vivida a partir da intimidade com o mistério de Deus, a ponto de poder exclamar: “A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus, um grande diálogo”.
“Num momento inesperado, abandonada a mim mesma, encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida – e os braços dela são muito macios e envolvem-me de modo muito protetor, e nem sequer consigo descrever o bater do coração: tão lento e regular e tão suave quanto abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse, e também tão bondoso e misericordioso”, registrou em outra página.
Etty classificava como certo tipo de exibicionismo o afã de alguns em “tornar o amor a Deus público demais”. Para ela, essa relação com o Deus que a habitava era vivida tão genuinamente que ela a percebia como “coisas íntimas – porventura mais íntimas do que as do sexo”. A discrição com que vivia a sua relação com Deus não significava de modo algum, porém, que essa experiência não repercutisse exteriormente.
No contexto dramático em que Etty vivia, entrar em si mesma poderia parecer uma fuga. Não era. Ela estava determinada a “viver plenamente, tanto para o exterior como para o interior, não sacrificar nada da realidade exterior em benefício da interior e vice-versa”, conforme escreveu. Na experiência de sua interioridade, ela não procurava abstrair-se da realidade que a cercava, mas manter os olhos abertos e lê-la com mais profundidade.
Relacionada a isso, estava a sua convicção de que a paz interior e a paz na sociedade e no mundo estão intimamente relacionadas, sendo impossível dissociar uma da outra. “No fundo, o nosso único dever moral é o de desbravar em nós mesmos vastas áreas de tranquilidade, de uma tranquilidade cada vez maior, até sermos capazes de irradiar também sobre os outros. E quanto mais paz houver nas pessoas, mais paz haverá neste mundo conturbado”, defendeu ela.
A luz para agir em um contexto difícil como o seu só poderia vir dessa presença que a habitava. “A única certeza sobre como você deve se comportar só pode brotar das nascentes que jorram do profundo de você mesma”, afirmou. Habitar na própria interioridade, para ela, implicaria estarmos atentos aos nossos movimentos interiores e às atitudes que nos dispomos a cultivar – “prestando ouvidos ao ritmo que você traz dentro de si”, como escreveu.
Por isso, Etty não via no ódio uma resposta ao ódio que o nazismo alastrava pela Europa. “Esta barbárie que é a nossa, deveríamos rejeitá-la interiormente, não temos o direito de cultivar em nós esse ódio, porque não é dessa forma que o mundo supera sequer um polegar da lama em que se vê envolvido”, afirmou. “Cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio já exorbitante torna esse mundo inabitável e insustentável”.
Crescer em intimidade com a Vida que habita em nós não é, pois, uma fuga. É um exercício que permite manter os olhos abertos, repudiar o mal e alargar o coração. Uma passagem particularmente impactante de seus escritos atesta como Etty levava isso a sério: “Para formulá-lo de um modo muito cru: se um homem das SS me matasse a pontapés, eu ainda levantaria os olhos para olhá-lo no rosto e me perguntaria, com uma expressão de surpresa e medo, e por puro interesse pela humanidade: ‘Meu Deus, rapaz, o que terá acontecido de tão terrível em sua vida para fazer você praticar ações desse tipo?’”, escreveu ela.
Não sendo uma fuga, hospedar-se na própria interioridade tampouco era uma ilusão. “Não acreditarei, em minha inocência, que a paz que descer sobre mim é eterna; aceitarei a inquietude e o combate que se seguirão”, afirmou Etty. Ela sabia que esse era um caminho sempre a percorrer, nunca dado por terminado. Sabia que o caminho da interioridade não obedece ao ritmo de nosso arbítrio – seu amadurecimento é como o de uma árvore, podendo ser cultivado, mas não acelerado.
Etty manteve a sua visão a respeito da nocividade de “cada migalha de ódio” mesmo diante do que testemunhou no campo de Westerbrock, onde estava presa antes de ser deportada para Auschwitz. Para ela, não poderia haver autêntica resistência ao ódio que nos cerca sem resistência ao ódio que emerge de dentro de nós mesmos. “Onde quer que eu esteja, tentarei irradiar um pouco de amor, desse verdadeiro amor ao próximo que há em mim”, escreveu. “Não quero ser nada especial. Quero tão somente tentar tornar-me aquela que já está em mim, mas ainda busca seu pleno desabrochar”.
Etty Hillesum (1914-1943) foi uma jovem judia holandesa. Entre 1941 e 1943, ela manteve um diário em que registrou o caminho de sua interioridade naqueles anos de intensificação à perseguição aos judeus e a outras minorias. Deportada para o campo de concentração de Auschwitz em setembro de 1943, junto com seus pais e um de seus irmãos, morreu na câmara de gás em novembro do mesmo ano.
Felipe Koller é repórter do Sempre Família e professor de Teologia. É mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).