O monge do século XII Guilherme de Saint-Thierry sabia o que significa ter se tornado para si mesmo “uma trabalhosa e entediante questão”, como escreveu. Ele reconhecia que, ainda que tendesse para o alto, o seu peso parecia vencer. “Quanto mais tendo, maior peso me impele para baixo, lançando-me em mim mesmo, sob mim mesmo”, escreve. É aí, constatada a própria incapacidade de viver em Deus, que Guilherme se refugia na rocha – evocando a passagem do Êxodo, capítulo 33, em que Moisés pede para ver a face de Deus.
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“Ponho-me de novo na minha pedra, que é o refúgio dos ouriços cheios dos espinhos dos seus pecados; e de novo pego tua mão direita, que me cobre e me protege, para novamente beijá-la”, diz Guilherme, dirigindo-se a Deus. “Pelo fato de eu ter sentido, mesmo ligeiramente, ou visto, ainda mais se inflama o meu desejo; e eu espero, já quase impaciente, que um dia ergas a mão que me cobre e infundas a graça que ilumina, para que enfim, segundo a resposta da tua vontade, morto para mim mesmo e vivendo para ti, revelada a tua face, tua própria face eu comece a ver e seja, pela visão da tua face, afetado por ti”.
É esse deixar-se afetar por Deus que está no cerne da vida espiritual. É do próprio Deus que nos vem a capacidade de responder ao seu amor. É o lugar desse deixar-se afetar, desse afeto, é a rocha, isto é, a humanidade do Cristo. “Falar por teu Filho, para ti, outra coisa não foi que pôr ao sol, isto é, manifestar, quanto e como nos amaste, tu que não poupaste sequer teu próprio Filho, mas o entregaste por todos nós, como por nós ele mesmo se entregou, amando-nos também”, escreve o monge.
A vida de Jesus é a palavra de amor que o Pai nos dirigiu para “suscitar e provocar” a nossa resposta de amor. O amor só pode se originar em um âmbito de liberdade, de suavidade – nunca na coação, na constrição, na cobrança. Para Guilherme, não há coação onde não há liberdade, e se não há liberdade também não pode haver justiça.
Assim, Guilherme afirma que somos salvos por Deus recebendo dele tanto o amá-lo quanto o por ele sermos amados. “Amaste-nos primeiro para que nós te amássemos. Não é que tenhas necessidade de ser amado por nós. É que nós não poderíamos ser a não ser te amando, porque tu nos fizeste”, escreve. Há uma ligação entre a vocação do nosso ser e uma relação de amor com Deus: correspondemos àquilo que somos, e que somos chamados a ser plenamente, quando vivemos nesse amor.
Permitindo-nos afetar pelo amor de Deus manifestado em Cristo, acolhendo esse amor como fonte da nossa identidade e enraizando-o em nossa interioridade, alimentando-nos continuamente da memória desse amor, mantém-se aceso em nós o desejo de Deus. “Desejo, pois, te amar, e amo te desejar, e desse modo corro para conquistar a quem me tem conquistado, ou seja, para te amar perfeitamente um dia, a ti que nos amaste primeiro”, exclama Guilherme.
Se há um desejo, significa que ele pode ser satisfeito. “Quem deseja o que não pode alcançar é um infeliz. Ora, a infelicidade é de todo estranha ao reino da beatitude”, explica o monge. É uma satisfação, porém, que sempre permanece sede: vivemos continuamente saciados e continuamente sequiosos do Deus vivo. Quando Guilherme fala desse afeto, tem em mente uma disposição estável da nossa interioridade, que indica onde habita o nosso amor e que direciona fundamentalmente a nossa vida.
Por isso, o monge não hesita em afirmar que “essa afeição é a perfeição”. “Ir sempre assim é chegar”, diz Guilherme. E isso porque esse amor conduz à unidade, ou até mesmo se confunde com ela. Aqui o monge se fundamenta no coração do mistério da Trindade. O amor entre o Pai e o Filho no Espírito Santo “é tão grande que é unidade, e a unidade é tão grande que é homooúsion, ou seja, unidade de substância do Pai e do Filho”.
“Nós te amamos à medida que de ti recebemos teu Espírito, que é teu amor, ele que ocupa e possui todos os recessos de nossas afeições e perfeitamente os converte à pureza da tua verdade, à verdade da tua pureza, ao pleno consentimento em teu amor. E aí se faz tal conjunção, tal adesão, tal fruição da tua doçura, que o próprio Nosso Senhor, teu Filho, a chama de unidade”, escreve Guilherme, referindo-se ao capítulo 17 de João, em que Jesus pede ao Pai que os discípulos sejam um como ele e o Pai são um.
É quando o Espírito Santo habita em nós que convertem-se todas as afeições da nossa alma; aí então nós amamos a Deus – “ou melhor”, diz Guilherme, dirigindo-se a Deus, “tu te amas em nós: nós pelo afeto, tu pela eficácia, fazendo-nos um em ti por tua própria unidade, ou seja, por teu próprio Espírito Santo que nos foi dado por ti”. Conhecer a Deus e amá-lo são disposições que se identificam com o ser um com ele. É quando se realiza o desejo de Guilherme – e o nosso.
Guilherme de Saint-Thierry (c. 1080-1148) foi um monge cristão nascido na atual Bélgica. Abade beneditino em Saint-Thierry, renunciou ao posto por volta dos 55 anos de idade para ingressar na recém-fundada Ordem Cisterciense. Entre seus escritos, constam Sobre a contemplação de Deus e a Carta de ouro.
Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.