Para o teólogo russo Pável Floriênski, toda a realidade tocada pelos nossos sentidos é símbolo do Invisível| Foto: Felipe Koller
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Este é o último texto de uma série de 12 artigos que abordaram, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. Nos outros textos, falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore, Sinclética de Alexandria, Roger de Taizé, Jalal ad-Din Rumi, Hildegarda de Bingen, Plotino e Teresa d’Ávila.

“O que eu fiz durante toda a minha vida? Contemplei o mundo como um conjunto, como um quadro e uma realidade única”. É a reflexão de um pai, preso há mais de três anos em um gulag, em uma carta a um de seus filhos. Síntese da trajetória percorrida e indicação do caminho a percorrer, a expressão aponta o centro do pensamento do padre Pável Floriênski, que seria martirizado meses depois de enviar essa carta.

Esse centro é a percepção de que “tudo é significado encarnado e visibilidade inteligível”, como ele escreveu. Toda a realidade tocada pelos nossos sentidos é símbolo do Invisível – e, por isso, a verdade só pode ser conhecida como unitotalidade, como palavra viva capaz de nos fazer participar do sentido unitário de toda a realidade. Por trás disso, está a convicção de que há uma unidade substancial de tudo aquilo que existe: tudo está conectado com tudo, cada trama da existência entretece a mesma rede – cujos fios conduzem ao mistério que está no fundamento da vida: a Luz sem ocaso da comunhão trinitária.

Esse sentido contemplativo, que acolhe a presença de Deus a partir da realidade ao nosso redor, emergia com grande frescor nas cartas que escreveu do campo de concentração aos seus familiares. “Faz tempo que queria escrever: observem com mais frequência as estrelas. Quando tiverem um peso na alma, olhem as estrelas ou o azul do céu. Quando vocês se sentirem tristes, quando lhes ofenderem, quando algo não acontecer como vocês esperavam, quando a tempestade se desencadear nas suas almas, saiam para fora, ao ar livre e entretenham-se sozinhos com o céu. Então as almas de vocês encontrarão a paz”, aconselhou.

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Trata-se, como Floriênski definiu, de “uma percepção mística do mundo”. “Há sons na natureza – tudo ressoa –, sons menos distintos, sons que provêm da profundidade; mas nem todos os escutam e é difícil que nasça um eco destes sons”, escreveu ele. Para escutar esses sons, é preciso se aproximar do real sem violência, sem pretensão de controle, com o coração aberto, em um contexto de uma relação vital.

“Tudo depende do modo como interpretar a matéria”, indicou Floriênski. “Na minha mente as coisas não estavam cobertas por véus, ao contrário, elas mesmas desvelavam sua própria essência espiritual”. Para ele, bem como para outros filósofos e teólogos russos de sua geração, o símbolo – a percepção do Invisível no visível – é a linguagem própria da vida espiritual, é a visão que emerge quando se acolhe o ritmo da Vida que pulsa em tudo o que existe.

“Deus está em torno de nós, junto a nós, nos circunda: ‘Nele, de fato, vivemos, nos movemos e existimos’ (At 17,28), imersos no inexplorável abismo das ações divinas, graças às quais e por meio das quais podemos existir. Essas energias divinas, que são a própria Divindade, nos guiam e operam em nós, mesmo se frequentemente não o saibamos”, escreveu Floriênski.

“Mas, para além de tudo isso, está a esfera da nossa liberdade. As suas raízes brotam das mesmas energias divinas, fundando-se totalmente nelas. Ao mesmo tempo, porém, em seus cumes ela possui o dom da autodefinição, o dom de comprazer-se ou não na vida com Deus, possui o poder de aproximar-se Dele ou de afastar-se Dele”.

Tudo o que existe só existe porque participa do ser de Deus. Subsiste tudo aquilo que, originado da dinâmica criativa do ser humano – imagem Daquele que o criou –, mantenha o seu nexo com a ordem eterna do ser: o amor, o voltar-se para o outro, o êxodo de si mesmo. O mal, portanto, é aquilo que não participa desse fundamento do ser. Em outras palavras, o que não vive em comunhão não tem consistência ontológica. O pecado está onde o ser humano “arranca à criação do terreno do absoluto, dispõe tudo sobre um único plano, tornando tudo superficial e banal”, afirmou Floriênski.

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Essa visão supõe o Deus revelado em Jesus Cristo como comunhão e doação de si, como unidade na diversidade: “Deus é Amor subsistente, Amor interno em si mesmo e então externado fora de si” – com a criação, Deus “põe a seu lado um ser autônomo” e lhe dá “a liberdade de evoluir segundo leis próprias e, portanto, na autolimitação voluntária de Deus”. Quando o Filho assume a natureza humana, é Deus quem “depõe a forma da sua glória e assume a forma da sua própria criatura” e “se submete às leis da vida criada”. “Deus ama a sua criatura e se consome por ele e pelo seu pecado”.

Assim, a inteligência simbólica decodificada por Floriênski é uma reação tanto a um positivismo sem raízes ontológicas quanto a uma metafísica abstrata, que volta as costas ao concreto. É a essa visão que conduz, segundo ele, uma compreensão autêntica do dogma, oposta ao dogmatismo, que é o que ocorre quando a dogmática se apresenta separada da vida, em um sistema “tão chato e tedioso que não encontramos nem mesmo tempo para polemizar com ele”, como escreveu.

Cairão as escamas dos nossos olhos e entraremos no verdadeiro conhecimento de Deus quando percorrermos o mesmo caminho que o Filho: o da kênosis, do abaixamento, da pobreza de si. Não se trata tanto de um gesto de humilhação ascética quanto de uma decisão de ser um dom para o outro, de acolher o outro no próprio espaço interior, de orientar-se para o amor. Essa dinâmica não se reduz a um comportamento moral, mas constitui um ingresso no espaço interior da realidade, onde a Vida se manifesta.

Escreveu Floriênski: “Desça em você mesmo e você verá amplas volteios. Abandone o medo, entre mais ainda na profundidade da gruta. [...] Aqui seu passo é leve. [...] As galerias ecoam, cheias de um som que nelas paira: como se inúmeros pêndulos batessem seus sinos. Como na oficina do relojoeiro, ritmos prementes se perseguem e se sobrepõem, se entretecem e se misturam. No espaço dilatado vibra o sentido do nosso destino. Os corações de todas as criaturas pulsam nessa profundidade. Aqui, na passagem das trevas à luz, têm origem todas as coisas do mundo. Nessas grutas há um entrelaçamento de vibrações rítmicas, velozes e lentas, surdas e sonoras, de ribombos e de ecos que remetem uns aos outros – este é o ventre vivo que se chama Universo. [...] Precisamente aqui, sob os contornos dessa gruta do coração, surgirá resplandecente a Estrela da Manhã”.

Na experiência de Floriênski, no seu pensamento enraizado na Vida que contemplava na realidade sensível, emergiu a figura de um Deus humildemente presente em toda a criação. É como Floriênski leu a parábola dos talentos: Deus depositou no terreno da criação a moeda com a sua imagem, mas cabe a nós a liberdade de apurar o olhar para acolhê-la como dom e, assim, multiplicá-la, ou de mantermo-nos na superfície, ignorando-a e a enterrando ainda mais – permitir, enfim, que o mundo seja translúcido ou nos fecharmos em sua opacidade.

Pável Aleksandrovitch Floriênski (também grafado como Florenskij ou Florensky) (1882-1937) foi um filósofo, teólogo, matemático, físico e presbítero ortodoxo russo. Foi casado com Anna Giatsintova, com quem teve cinco filhos. Sofreu diversas represálias a partir da Revolução Russa, tendo sido exilado em 1934 para o campo de concentração das Ilhas Solóvki. Foi fuzilado em 1937, perto de São Petersburgo. É o autor de A coluna e o fundamento da verdade, A perspectiva inversa e O significado do idealismo, entre outras numerosas obras.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.

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