A brasileira Alessandra Luiza de Morais, de 49 anos, define a sua profissão como brincante. A ocupação de Lele, como é conhecida, é justamente brincar com crianças de todas as idades. No entanto, nos últimos meses, se sua atividade seguiu sendo a mesma, o cenário e a situação dos meninos e meninas do outro lado do jogo mudaram drasticamente.
Em uma semana, ela estava em Nova York, onde mora há 14 anos, com as várias crianças que participam do grupo de brincadeiras que ela mantém no quintal de sua casa ou em algum parque da cidade norte-americana. Na semana seguinte, ela estava em um campo de refugiados na Grécia, brincando com crianças sírias que chegaram até lá de bote, depois de presenciarem todo tipo de atrocidades.
“Elas já haviam perdido tudo. Não queria que perdessem também a infância”, conta Lele. Com a ideia de ajudar crianças a continuar sendo crianças mesmo diante dessa situação, ela criou o Child Rescue Project. “Desde setembro do ano passado, quando comecei a ver fotos das crianças sírias mortas após se afogarem na travessia, passei a acompanhar essa crise, a coletar doações, a me envolver”, lembra Lele, que concedeu uma entrevista à BBC sobre o seu trabalho.
Campo de refugiados
Após uma campanha de financiamento coletivo, ela foi até o campo de refugiados de Eko para brincar com as crianças sírias. “Ia bancar tudo eu mesma, mas uma amiga achou que poderíamos fazer um financiamento coletivo, especialmente para comprar material”, conta Lele. “Acabou sendo um sucesso. Pedimos US$ 3 mil, mas conseguimos mais que o dobro. Quando vi, pensei ‘Gente, tudo isso? Não vou dar conta de levar tanto brinquedo e giz!’. Mas foi lindo ver essa generosidade”.
O primeiro choque foi ver que o acampamento de Eko era um posto de gasolina. “Cheguei lá e fui conversar com dois espanhóis que já estavam trabalhando com as crianças, entre outras coisas. Eles chegavam lá, colocavam os brinquedos no chão numa espécie de tenda, e entrava uma manada de crianças. Segundos depois, elas começavam a disputar os brinquedos e a se bater”, conta Lele. “Essas crianças são incríveis, são uns amores, mas elas são uma panela de pressão. Nem tem como ser diferente, né? Tem tanta coisa por baixo, estão tão traumatizados, que mal conseguem brincar, qualquer coisa já saem na mão”.
“Passei meu primeiro dia lá no campo controlando briga, tentando acalmá-los. Morri de tristeza. As crianças choravam o tempo todo”, diz ela. “No dia seguinte, pedi para a Clara (a voluntária espanhola) para eu começar o dia e ela topou. Não sabia exatamente o que fazer, mas sabia que tinha de ser uma coisa amorosa, calma, para lidar com a energia desses meninos, algo alegre, mas sem ser explosivo. Então, fui pegando as crianças pela mão, duas por vez. Pegava, abraçava, beijava e levava para a dentro da tenda e falava de um jeito bem tranquilo para elas ficarem sentadinhas. Fizemos uma roda e peguei um livro de histórias e fui tirando umas mágicas do bolso. Foi dando certo. Olhei para a Clara e ela estava chorando, nunca tinha visto os meninos tranquilos daquele jeito.”
Piões
Lele havia levado piões do Brasil, mas se surpreendeu quando viu que não precisaria ensinar as crianças a brincar com eles. Elas já conheciam o brinquedo. “Sem querer, conseguimos levar para eles a melhor memória que eles tinham do país deles. Uma memória que não tinha nada a ver com a guerra na Síria, tinha a ver com tempos felizes, era uma memória alegre. Eles estavam muito empolgados, fazendo algo que tinham aprendido na cidade, na escola, no quintal deles. Foi incrível”, conta ela. “Fiquei muito emocionada. É incrível ver como a brincadeira une, acalma, põe a criança em contato com ela mesma”.
As brincadeiras levavam tranquilidade para o ambiente adverso das crianças. “Um menino me levou até a tenda dele e só estava o pai. Perguntei da mãe. Ele apontou para o céu”, conta Lele. “Fiz um sinal com a mão, perguntando ‘como?’, e ele fez um som com a boca: ‘Bum!’ Você engole seco, abraça a pessoa, demonstra todo o seu amor”, disse ela à reportagem da BBC.
“Quando eu estava com as crianças, claro que eu ficava super emocionada com as histórias, mas não sentia vontade de chorar – mesmo nos momentos mais difíceis”, diz Lele. “Só que à noite, quando ia pro hotel, chorava sem parar. Pensava que eu tinha uma cama, um banho quente… os meninos não tinham nada disso”.
De país em país
Agora, Lele está passando algumas semanas com crianças refugiadas na Áustria. Depois, deve ir para a Turquia e o Líbano. O campo Eko, na Grécia, não existe mais. “Os refugiados foram retirados de lá e levados para um campo militar, onde não podem cozinhar, não há escola e as condições são péssimas. E lá ONGs estrangeiras também costumam ser proibidas”, conta Lele.
“Uma das coisas que quero repetir é o projeto de troca que fiz entre crianças de uma escola aqui de Nova York com crianças sírias. Umas fizeram desenhos para as outras – foi incrível”, diz ela. “Agora quero fazer vídeos também. Porque quero mostrar para as crianças que todos são iguais. Aquela pessoa sofrendo é parte de você”.
Leia a íntegra da entrevista de Lele e mais fotos na reportagem da BBC.
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