Jonathan Campos/Gazeta do Povo
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Quando a reportagem visitou a Comunidade Terapêutica Perpétuo Socorro, em Quatro Barras (PR), a interação espontânea, amigável e afetuosa entre o gestor, Marcelo Fortunato, e cada um dos trinta acolhidos – com uma história de dependência química por trás de cada rosto – saltava aos olhos. Toda essa empatia tem explicação: “Hoje é dia 7?”, perguntou Marcelo ao começar a conversa sobre o seu trabalho. “Ontem fez 12 anos e 11 meses que fui acolhido em uma comunidade como essa”.

“Eu também sou um dependente químico”, contou ele, usando o verbo no presente para destacar o fato de que a dependência química é incurável – a saída está em controlá-la, mantendo a sobriedade. “Por 24 anos, usei muita droga – e era muito compulsivo. Cheguei ao fundo do poço com 40 quilos a menos do que tenho hoje, morando na rua e tendo como droga preferida o crack”.

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A obra da comunidade é mantida pelo Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – a famosa igreja de Curitiba, administrada pelos padres redentoristas, que movimenta as quartas-feiras do bairro Alto da Glória com as novenas em honra da santa. Marcelo, que tocava uma comunidade terapêutica em Londrina, foi convidado pelos redentoristas para fundar uma comunidade na região de Curitiba em março de 2012.

Desde então, dezenas de acolhidos passaram pela comunidade e recobraram uma vida digna. Muitos deles replicam ações semelhantes pelo estado. “Teve gente que chegou aqui com oito filhos, o mais velho com 13 anos. Moravam todos num carrinho de papelão no meio da rua. Hoje o pai trabalha, tem plano de saúde, casa e todos os direitos que um cidadão deve ter na nossa sociedade”, contou Marcelo.

O tratamento dura nove meses, divididos em três etapas. Os primeiros três meses são de adaptação ao local, interiorização da proposta e revigoramento físico. O segundo trimestre introduz momentos de reinserção social – às quartas, os internos participam de funções de acolhida no santuário. Os últimos três meses trabalham de modo mais intenso as questões ligadas à reinserção familiar. Durante todo o tratamento, os familiares visitam a comunidade uma vez por mês.

“A vida na dependência química é muito dolorida. Então precisamos fazer um reforço de qualidade de vida que sirva de incentivo para continuar a vida lá fora”

Ao longo do processo, são oferecidas atividades como aulas de atletismo, futebol, jiu-jítsu, pintura, canto, violão e mountain bike. Os acolhidos também trabalham em uma oficina de marcenaria e uma estufa de rosas – e se preparam para abrir um empório para atender os turistas que descem a Estrada da Graciosa, o histórico caminho entre a capital paranaense e o litoral do estado. A proposta é que os internos tomem gosto por atividades que lhes deem prazer e o motivem para retomar o dia a dia após o fim do tratamento.

“Nós acolhemos essas pessoas já pensando na volta delas para a sua casa e na sua vivência em sociedade”, explicou Marcelo. “É um tratamento muito leve, muito suave e muito prazeroso. A droga já maltratou demais. A vida na dependência química é muito dolorida. Então precisamos fazer um reforço de qualidade de vida que sirva de incentivo para continuar a vida lá fora”.

“A gente chega meio destruído”

Na chácara, cerca de um quarto dos internos teve problemas com o álcool. Mário Elói da Luz, de 55 anos, estava terminando seu período na comunidade quando conversamos. Ele era o responsável pelo almoço do dia – um macarrão delicioso, acompanhado de frango, arroz, feijão e salada. Marcelo aproveitou para reforçar a preocupação da gestão da casa para que as refeições sejam dignas. “Tem muita comunidade terapêutica por aí servindo pé de galinha todo dia”, disse.

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Na altura da publicação desta reportagem, Mário já deve estar em casa, com o filho e a nora. Ele trabalha com construção civil e deixava a comunidade já contratado para terminar a casa de um dos professores de arteterapia do local. Quem indicou a comunidade foi a ex-mulher. Separado já há algum tempo por causa do alcoolismo, Mário estava à beira de ir morar na rua.

“Durante esses 55 anos, eu nunca tive um lugar aconchegante como este”, contou. “A gente chega meio destruído. Foram 30 anos no álcool. Mas estou saindo daqui renovado. Os padres e o Marcelo tratam a gente com muito respeito. Isso me chamou muito a atenção. E a equipe é extraordinária”.

Ronaldo Carolo é o decano dos internos. O advogado já estava limpo havia dez anos quando teve uma recaída. Decidiu voltar a buscar a ajuda e entrou em contato com a comunidade. Na chácara, sua paciência e meticulosidade fazem dele o homem certo para o cuidado da estufa em que se cultivam rosas para o santuário. “Sou mais tranquilo, já não me sinto à vontade no meio da agitação dos jovens”, confidenciou sorrindo.

A presença de Ronaldo na comunidade é um recado importante àqueles que consideram o alcoolismo uma realidade menos perigosa que a dependência de cocaína ou crack – ou que se sentem em uma posição de demasiado prestígio para buscar ajuda em uma comunidade terapêutica. “Eu sei que tem gente que pensa: quem sou eu para estar aqui ao lado desses ‘noias’? Mas aqui estamos juntos, é tudo de igual para igual. A dependência química é uma doença que não escolhe idade, profissão ou classe social”, avisou Ronaldo.

Técnica e amor

Marcelo faz questão de sublinhar a seriedade do trabalho da Perpétuo Socorro e das outras 300 comunidades afiliadas à Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), entidade fundada em 1990 para qualificar e certificar o trabalho dessas organizações. Reportagens do The Intercept Brasil no primeiro semestre de 2019 mostraram as violações de direitos humanos praticadas por algumas comunidades.

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“Tem comunidade que é falcatrua mesmo. E tem aquelas bem-intencionadas, mas que acham que só o amor vai resolver, sem técnica nem profissionalismo”, atestou Marcelo, que atua como delegado estadual da Febract no Paraná. A federação não aceita a filiação de comunidades que não atendam uma série de exigências presentes na legislação brasileira e nas normas da Federação Mundial de Comunidades Terapêuticas (WFTC, na sigla em inglês) – e trabalha capacitando profissionais e fortalecendo as organizações que trabalham com seriedade nesse campo.

A psicóloga Roberta Vilela Seraphim, de 28 anos, trabalha com comunidades terapêuticas desde 2013 e está há meio ano na comunidade. Ela participa do dia a dia dos acolhidos e realiza o acompanhamento psicoterapêutico deles e de seus familiares durante o processo. “Se eles estão na cozinha ou na estufa de rosas, vou até lá ver como é o trabalho de cada um, como a equipe está se relacionando, se eles gostam de desempenhar aquela função e por aí vai”, explicou.

A partir disso, Roberta aponta caminhos para o desenvolvimento de habilidades sociais que ajudem o acolhido a assumir a vida cotidiana lá fora – e atua para auxiliar a restaurar a confiança mútua entre o interno e a sua família. “O objetivo é que os acolhidos entendam por que buscam a droga, por que não conseguem parar de usá-la, por que deixam de lado a família pela droga”, explanou a psicóloga. “Não sou eu que vou dizer o porquê. É preciso que o acolhido esteja apto para entender o porquê. Um dos principais motivos é a doença, a dependência química. Mas a gente vai entender juntos o que o levou a desenvolver a doença”.

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Além da psicóloga, uma profissional de serviço social também acompanha a comunidade. Os padres redentoristas a visitam, mas as atividades religiosas são livres – participa quem quer. “Deixamos bem claro que não fazemos um trabalho religioso. A dependência química é uma doença que precisa de tratamento profissional, científico”, garantiu Marcelo.

Na esteira das novas regulamentações para as comunidades terapêuticas, expedidas neste ano pelo Ministério da Cidadania, a comunidade vai aproveitar a construção de um novo dormitório – adequado às novas normas, que pedem no máximo quatro pessoas por quarto – para expandir a capacidade para 45 internos. Durante a nossa visita, Marcelo não parava, atendendo a telefonemas e respondendo a mensagens relacionadas à administração da comunidade. “Tem gente que fabrica mísseis. A gente fabrica vida”, resumiu.

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