O sociólogo e crítico literário Antonio Candido defendia a literatura como um direito humano fundamental, devido ao seu papel humanizador e à sua capacidade de formação da personalidade, na medida em que ela nos põe em contato com diferentes sensibilidades e com realidades que não experimentamos em primeira pessoa. Há dois anos, quem tem comprovado isso na prática são os profissionais e os apreendidos dos centros socioeducativos do Paraná – unidades que executam as medidas privativas de liberdade no caso de jovens de 12 a 21 anos que entram em conflito com a lei.
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Isso porque, no começo da pandemia da Covid-19, a assistente social Andressa Cândido deu início a um trabalho despretensioso no Centro de Socioeducação (Cense) de Londrina II: como havia passado para o regime de teletrabalho, a profissional teve a ideia de acompanhar os jovens por meio de um Clube de Leitura, trabalhando temáticas como o racismo e o machismo. “São temas que têm a ver com o ato infracional dos jovens, mas que, dando a eles um espaço de fala, permitem que eles se vejam para além do ato infracional”, explica Andressa.
Logo na segunda rodada do Clube de Leitura – um livro é proposto a cada mês –, o projeto ultrapassou as fronteiras do Cense II e atingiu outros centros. Hoje as 28 unidades do sistema socioeducativo paranaense, ligado à Secretaria da Justiça, Família e Trabalho (Sejuf) do governo do estado, estão envolvidas com o projeto, sobretudo as 18 que atuam com regime de internato – as outras são de semiliberdade. Mas a participação não é obrigatória: os 30 a 50 jovens que participam dos encontros virtuais a cada mês aderem livremente à proposta.
De Torto arado, premiado romance brasileiro de 2019, ao best-seller juvenil Diário de um banana, os socioeducandos têm navegado por diferentes gêneros literários em uma viagem transformadora. O impacto do projeto lhe rendeu em 2021 o posto de um dos vencedores da primeira edição do Prêmio Prioridade Absoluta, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na categoria “Poder Público – entidade do Poder Executivo (administração direta da esfera estadual)”. Desde então, o próprio CNJ passou a replicar a ideia em nível nacional.
O ineditismo fica por conta do formato online, que permitiu duas vias de interação importantes: por um lado, o contato entre os jovens de diferentes centros espalhados pelo Paraná traz outra perspectiva para a situação de cada um; por outro, foi possível colocá-los em contato com especialistas, convidados a cada mês para um bate-papo sobre a obra – muitas vezes, é o próprio escritor, como foi o caso de Itamar Vieira Junior, autor de Torto arado, e de Edi Rock, do Racionais MC’s, um dos autores do livro Sobrevivendo no Inferno.
Como se as grades deixassem de existir
“A gente frisa bastante a questão da horizontalidade que os meninos experimentam ao conversar entre si e com o autor. Os próprios autores e estudiosos se apresentam com uma linguagem acessível”, conta Amarildo de Paula Pereira, diretor do Cense II. “Essa forma horizontal de trabalhar com o adolescente trouxe uma humanização e uma aproximação que faz com que as grades pareçam deixar de existir”.
A psicóloga da unidade, Thayane Carolina, corrobora: “Os meninos se surpreendem com uma capacidade de leitura que eles nem imaginavam que tinham. Eles se empoderaram, se reconhecendo capazes de ler e de discutir as leituras que faziam”. No Cense II, Thayane contribui com o acompanhamento da leitura dos jovens ao longo do mês, contextualizando os adolescentes a respeito do livro, ajudando-os a se aproximar de estilos literários variados e garantindo que, na videoconferência, eles se sintam à vontade para compartilhar suas experiências com a leitura.
“Colocar o adolescente na posição de protagonista dá a ele uma facilidade de se comunicar, porque agora ele sabe que será escutado. Isso faz diferença até mesmo na postura dos adolescentes nas audiências”, complementa Amarildo. “Eles colocam a opinião deles, concordam, discordam, interpelam. O Clube de Leitura fez com que os meninos se tornassem sujeitos da história socioeducativa deles”.
Além do arroz e feijão
O alcance do projeto tem até mesmo mudado a forma como as unidades se relacionam com a comunidade ao seu redor e com a sociedade em geral, quebrando estereótipos comuns. “Antes a gente tinha que ir atrás para fazer parcerias. Hoje são as pessoas que vêm até nós propor atividades”, resume Amarildo. Além disso, a relação entre os profissionais das diferentes unidades se estreitou, com a promoção da troca de ideias e uma maior sintonia no trabalho de equipe. “A conexão entre as equipes enriquece muito o atendimento dos adolescentes, que às vezes são transferidos de uma unidade para outra”, explica Thayane.
Em um mundo marcado muitas vezes pela indiferença, sentir-se protagonista, capaz de refletir e de dialogar sobre os temas levantados pelas leituras, é um passo de fundamental importância para os socioeducandos. “No campo do serviço social, a gente estava acostumado a fazer apenas o arroz e feijão do atendimento individual. Como se o adolescente socioeducando não merecesse atividades diferentes”, diz Amarildo.
Diante disso, sentar-se à mesa com estudiosos e autores num Clube de Leitura é algo que antes parecia inimaginável, na avaliação de Andressa. “Esse jovem foi invisível a vida inteira. Quando cometeu o ato infracional, ganhou visibilidade, mas negativa”, diz a assistente social. “Com esse projeto, queremos olhar o adolescente com afeto e cuidado, enxergando o que ele tem de melhor”.