Este é o décimo texto de uma série de 12 artigos que abordam, cada um deles, a contribuição de alguma figura da história das religiões que tenha se destacado por sua experiência, sua sensibilidade e seu pensamento no que toca ao relacionamento do ser humano com o mistério de Deus. O Sempre Família publica um texto novo dessa série a cada segunda-feira. Já falamos de Bernardo de Claraval, Etty Hillesum, Gregório de Nissa, Juliana de Norwich, Rabindranath Tagore, Sinclética de Alexandria, Roger de Taizé, Jalal ad-Din Rumi e Hildegarda de Bingen.
“Muitas vezes já despertei fora do corpo para mim mesmo e depois entrei no corpo novamente, saindo de todas as outras coisas; eu já vi uma beleza maravilhosamente bela e tive a certeza de que, então, como nunca, pertencia à parte melhor; na verdade eu já vivi a melhor das vidas e já me identifiquei com o divino; e, tendo me estabelecido firmemente nele, cheguei àquela suprema realidade, estabelecendo-me acima de tudo mais no reino do Intelecto. Depois, após esse descanso no divino, quando desci do Intelecto para a razão discursiva, fiquei perplexo, perguntando-me como pude descer”.
O trecho acima poderia ser assinado por um místico cristão, muçulmano ou de outra religião, mas é de Plotino, o filósofo tido como o maior nome do neoplatonismo, que não se via como adepto de nenhuma religião específica. Para ele, a experiência mística é um momento da racionalidade filosófica. Isso significa que a mística, para Plotino, não é algo de irracional, mas uma experiência que ultrapassa a razão e a realiza num nível superior.
Plotino visualizava a realidade como uma complexidade composta por vários níveis, contidos uns nos outros perfazendo um todo. Uma imagem que ele elaborou para explicar essa visão apresenta o fundamento de todas as coisas como um centro, rodeado por um círculo de luz, que são as formas inteligíveis. Outro círculo de luz, que existe a partir do primeiro, é a alma do mundo. Por fim, uma roda sem luz própria circunda todo o conjunto: é o mundo sensível, a realidade aparente.
Sendo anterior a todas as coisas, esse fundamento que está no centro foge a qualquer tentativa de descrição e, por isso, não pode ser conhecido pela razão discursiva. Plotino o chamava às vezes de Bem, ou de Pai, ou ainda de Uno. Assim, cada nível subsequente é tanto mais uno e real quanto mais próximo desse centro. Assim, no seu caminho de ascensão filosófica, a alma parte do mundo sensível e toca a alma do mundo, que é a “luz da luz”, ou seja, como que uma imagem do Intelecto. Chega, então, até à união com o Intelecto e à união com o Uno, que são os dois gêneros de experiência mística de que Plotino trata.
Já na união com o Intelecto, não estão em jogo nem a sensibilidade dos sentidos nem o raciocínio discursivo, mas uma intuição interior que nos faz semelhantes ao Intelecto e, assim, propicia essa união. A união com o Uno, porém, só pode se realizar através de uma presença superior a todo conhecimento. A alma se une ao Absoluto.
Plotino procurou descrever essa experiência nos seguintes termos: “Como que arrebatado ou possuído tranquilamente na solidão e vindo a estar em uma condição inabalável, não se apartando com nenhuma parte de sua essência, nem se virando sobre si mesmo, está todo em repouso, como se viesse a ser permanência”.
Nessa experiência, a alma não se percebe distinta do Uno. “Era, pois, ele mesmo um, não havendo nele diferença nenhuma com relação a si mesmo, nem segundo outras coisas – pois nada se movia junto dele, nem a cólera, nem desejo de outra coisa estava presente nele que se elevava. E nem discurso, nem alguma intelecção. Para resumir, nem tinha a si mesmo, se é necessário também isso dizer”, escreveu Plotino.
Plotino chama a contemplação do Uno de “visão”. Trata-se de uma supraconsciência, de uma contemplação do fundamento da realidade. Essa experiência funda não uma rejeição do mundo sensível, mas uma nova maneira de se relacionar com ele. Esse caminho de ascensão, portanto, não pode ser feito com “pés, carruagens ou barcos”, como disse o filósofo, mas, “como que fechando os olhos, deve-se mudar para outra visão e despertá-la, aquela que todos têm, mas poucos usam”.
É um despertar contemplativo, um redirecionamento da atenção. Não é que o olhar volte as costas à realidade sensível, procurando outro plano apartado dela. Ao contrário, o olhar atravessa as próprias realidades que se manifestam a nós através dos sentidos para enxergá-las em sua inteligibilidade e, nela e para além dela, captar outra dimensão da realidade e, assim, encontrar aquilo que a alma busca.
Para Plotino, o Uno é “o amor inato da alma”, que sabe que ele é a sua origem. Essa união com o Uno não se realiza sem o desejo, sem o amor. “Aqueles para os quais essa afeição é desconhecida, reflitam nos amores daqui”, orientou o filósofo. Aquilo que amamos aqui acaba sempre revelando a sua fugacidade, mostrando não ser o que buscávamos. É o Uno “o verdadeiro amado”, que podemos não simplesmente abraçar, mas nos tornarmos um com ele.
Enquanto fugidia aos sentidos e às sensações no momento em que ocorre, quando a experiência passa deixa a lembrança de um pleno bem-estar. “Ali, certamente, não o trocaria nem por todas as coisas, nem se lhe oferecessem todo o céu, pois já não existe nada mais precioso e melhor que o bem”, registrou o filósofo. “Assim, então, pode julgar belamente e conhecer que este é o que desejava e afirmar que não há nada mais excelente que ele”.
Plotino mesmo percorreu esse caminho. Chegou a afirmar que quem teve essas experiências é capaz de entender o que ele quis dizer. Para ele, porém, não se deve sair à procura dessa experiência do Uno, mas estar a postos, serenamente, à espera de que ela aconteça – como os olhos vigilantes que aguardam o nascer do sol, que a eles se oferecem livremente.
Plotino (c. 205-270) foi um filósofo egípcio neoplatônico de língua grega. Escreveu as Enéadas.
Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor visitante da Faculdade São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina