Estamos novamente vivendo uma Semana Santa que, há apenas dois anos, consideraríamos inimaginável. No mundo inteiro, cristãos de diferentes denominações continuam sem condições de se reunir para para celebrar a páscoa – a memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus, segundo a tradição cristã.
Celebrar a páscoa dentro de casa, porém, pode ser uma oportunidade de recordar algo fundamental a respeito dessa festa: foi nas casas que a páscoa começou.
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Eu conversei sobre esse assunto com o padre Danilo César, da Arquidiocese de Belo Horizonte, que é mestre em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo, em Roma, e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), além de membro da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Confira a entrevista:
A páscoa dos hebreus era uma celebração doméstica. Que lugar esse elemento da casa ocupava na espiritualidade e na liturgia hebraica? Como ele se relacionava com o sentido da celebração da páscoa?
A páscoa dos hebreus – que tem raízes na experiência nômade do povo que fazia as ofertas das primícias, isto é, oferecia os primeiros frutos da colheita e do rebanho invocando a proteção contra os males exterminadores – foi celebrada no Egito como experiência salvífica de libertação. Deus interveio em favor do seu povo, com sinais prodigiosos e, por meio de Moisés, arrancou o povo do Egito e da escravidão com mão forte, contra o faraó que os oprimia. A décima praga do Egito, o “anjo exterminador” saltaria as casas dos hebreus, onde estivesse a marca do sangue do cordeiro nos portais. As casas assim marcadas foram poupadas. O anjo saltou sobre elas – do verbo “saltar”, em hebraico, vem a palavra páscoa – e feriu os primogênitos do Egito que não tinham os portais marcados. A casa, onde se celebrava, era o lugar da salvação.
No núcleo está uma consciência muito clara da parte do povo de que Deus o escuta e intervém em seu favor (cf. Ex 3). Contudo, esse evento, celebrado pelos judeus ano a ano, nas casas, não diz respeito apenas aos que estavam historicamente no Egito, mas a todos os judeus que compartilham da mesma fé no Deus de Israel. É por isso que Deus deixa um memorial festivo, para que cada geração, celebrando como aqueles que foram libertados, seja feita, pela fé e pelos ritos, contemporânea daquela experiência de salvação. Assim, ao celebrar hoje o rito da Páscoa, um judeu se sabe tirado por Deus do Egito e da escravidão, se sabe poupado do extermínio e tendo atravessado o Mar Vermelho com os primeiros. É uma mensagem muito poderosa, uma convicção que estrutura a experiência de fé dos judeus, nascida das casas.
As primeiras comunidades cristãs se reuniam também nas casas. O que isso indica sobre a experiência daquelas comunidades e o que ensina para os cristãos de hoje?
É preciso entender a experiência cristã a partir da páscoa de Jesus. Jesus passa desse mundo para o Pai e, antes de morrer, celebra com os seus discípulos, provavelmente, uma ceia pascal – portanto doméstica. Mas ele introduz um sentido novo: a sua entrega na cruz foi, naquela ceia, antecipada pelos gestos fundamentais de tomar o pão e o vinho, dar graças, partir o pão e distribuir pão e vinho para os comensais. Isso acontece na narrativa paulina (1Cor 11) e na dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). No evangelho de João o sinal é outro: Jesus assume o lugar do servo e lava os pés dos discípulos. Em ambas as propostas narrativas a mensagem é a mesma: sua morte tem um sentido de entrega pessoal e livre, amorosa, serviçal e gratuita por todos.
Seguindo o comando do Senhor de celebrar em sua memória, os cristãos participam do acontecimento da salvação que Deus nos oferece em seu filho, isto é, tornam-se iguais aos primeiros discípulos, contemporâneos dos acontecimentos da cruz e ressurreição.
O contexto da casa é igualmente interessante: não é no templo que se realiza a ceia. O templo de Jerusalém excluía as pessoas por meio de um esquema de pureza ritual. Jesus deixa o seu memorial na casa, pois assim aquele rito seria capaz de exprimir o sentido de sua morte. É bom que se diga: ele morreu como bandido, entre dois ladrões, e como herege, impuro, fora dos muros de Jerusalém. Sua morte e também sua ressurreição o situam fora do esquema religioso do templo. Somente o antigo rito das casas poderiam exprimir isso.
Como celebrar a liturgia da páscoa em nossas casas?
Eis o desafio, pois há muito tempo deixamos as liturgias domésticas de lado. Deixamos de rezar em família, deixamos de ler juntos as Escrituras, deixamos de invocar a bênção antes das refeições e deixamos também de agradecer ao final do dia por tudo que nos sucedeu e de pedir a benção, quando acordamos. Mais: já não sabemos fazer refeições em família, e quando o fazemos, o celular nos captura do convívio com os nossos familiares. Mas essas práticas podem ser retomadas – estão ao nosso alcance.
Seria preciso começar pelo que sabemos e recebemos de nossos pais e avós, sem medo de um constrangimento inicial – pode acontecer! Além disso, um bom começo seria valorizar as coisas mais fundamentais: comer juntos é uma celebração de profundo sentido religioso – indica comunhão e fortalece os laços. É possível negociar um acordo de não levar o celular para a mesa? Alguém pode fazer uma prece inicial agradecendo a Deus pela comida e pedindo a bênção para aqueles alimentos e pessoas dispostas à mesa, de maneira espontânea e simples. Os pais ou adultos começam dando o exemplo às crianças. Elas irão aprender e querer fazer depois. Isso fará um enorme bem à família e a cada um dos membros.
Saborear a comida e o convívio, o gosto de estar juntos, tem enorme sentido espiritual. É bom lembrar que Jesus gostava muito disso e participava das mesas nas casas. Conheço um casal que decidiu fazer, em casa e todos os dias, as leituras da bíblia propostas pela liturgia. Outras iniciativas podem também ser retomadas: rezar juntos algumas orações conhecidas, ler um trecho da bíblia, ou mesmo adotar um roteiro. Por certo, ao darmos este passo, estaremos contando também com a presença dele. É a ressurreição que garante isso. Em sua pregação os discípulos dirão: nós comemos e bebemos com ele depois que ressuscitou! Páscoa rima com casa, com refeição, com família, com fraternidade.
Como essa experiência celebrativa doméstica durante a quarentena pode contribuir para uma experiência mais profunda da liturgia nas igrejas após esse período?
Se permitirmos que elas aconteçam, farão, por certo, imenso bem às nossas comunidades paroquiais e igrejas cristãs, de um modo geral. Sinto que nossas liturgias, embora tenham origem doméstica, enveredaram por um caminho de formalidade e racionalismo. Aproximaram-se demais do esquema do templo de Jerusalém: altar distante do povo, separação moralista de habilitados e não habilitados para o culto, senso do sagrado avesso à noção da encarnação do Verbo que tudo assumiu, com seu nascimento, e tudo transformou, com sua morte e ressurreição.
Tem ainda um outro problema: um desligamento das questões da vida e do mundo, como se os ritos se bastassem. É bom ouvir os profetas e o próprio evangelho: os ritos precisam rimar com a vida, com a prática da justiça, com a solidariedade e a denúncia da maldade e da violência.
As mesas das nossas casas podem nos ensinar a incluir, pois elas sempre têm lugar para mais um. A comida é feita para todos: todos comem e todos bebem do que é servido. A igualdade se impõe ao redor de uma mesa, mesmo que se reconheça o lugar dos pais e avós. As mães só comem depois de ter servido a todos – que lindo é isso! Não haveríamos de aprender algo com esse exemplo? Nas casas os ritos obedecem ao ritmo da família e às possibilidades de todos. Os alimentos funcionam como extensão das relações. Ninguém come sem esperar os demais, de modo individualista. Nossas liturgias podem ser mais hospitaleiras, domésticas e gostosas – quentinhas! Isso, por certo, as tornaria também mais pascais e revelaria mais a presença de Deus.