O arcebispo salvadorenho Oscar Romero viveu uma mística ligada à crise e à disponibilidade para o martírio, na recusa a desencarnar a ação de Deus no mundo.| Foto: Divulgação/Causa de Canonização de Oscar Romero
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No cerne da espiritualidade do arcebispo salvadorenho Oscar Romero – experiência de fé que forjou um coração disposto ao martírio – estão duas convicções muito fortes, que, para alguns, à primeira vista, podem parecer até contraditórias. A primeira é que a salvação de Deus acontece na história concreta em que vivemos, sem subterfúgios que a acorrentem a alguma dimensão não palpável, não verificável – e isso pode ser ocasião de crise . E a segunda é que, mesmo que concreta, essa obra de salvação não tem dono: por um lado, não se identifica com nenhum programa político específico, e por outro, sua realização não é exclusividade da Igreja visível, embora seja a isso que ela esteja especialmente chamada.

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“O Deus verdadeiro, o Deus vivencial, o Deus de Moisés, o Deus da história” é aquele “que não apenas salva na história de Israel, mas que salva na história de El Salvador”, ensinou Romero. “Se Moisés tivesse sido um salvadorenho em 1978, teria ouvido junto à sarça ardente a mesma voz de Javé que escutou quando lhe ordenou arrancar o povo da tirania do faraó: ‘Sou o Deus que está com vocês'''. O arcebispo se incomodava, assim, com quem quer “conservar um evangelho tão desencarnado que, por isso, não se mistura em nada com o mundo que tem que salvar”. Segundo ele, isso trairia a própria vocação da Igreja, já que “a Igreja serve em cada país para fazer de sua própria história uma história de salvação”.

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Perceber isso, com profundidade, coloca o coração em crise, isto é, numa encruzilhada: coloca-nos à beira de uma decisão que realmente nos comprometa em favor dessa história concreta de salvação. “Há crise no coração de cada cristão; e eu digo a vocês, queridos irmãos, se neste momento um cristão em El Salvador não sente essa crise, é porque não refletiu sobre o que significa a mensagem de Deus e a semeadura de Deus no mundo”, disse Romero. “Muitos já superaram a crise e se comprometeram com o Reino de Deus. Muitos a superaram no sentido contrário: instalaram-se em suas comodidades, sendo mais fácil dizer: ‘A Igreja é comunista. Quem vai segui-la?’”

Romero bendizia a crise, pois leva a um comprometimento mais profundo e desmascara as hipocrisias. “A Igreja é a vinha onde o Reino de Deus sempre estará em crise. Felizes os que sentem e vivem a crise e a resolvem por um compromisso com nosso Senhor”, afirmava. “Uma Igreja que não provoca crise, um evangelho que não inquieta, uma palavra de Deus que não cutuca, uma palavra de Deus que não toca o pecado concreto da sociedade em que é anunciada – que evangelho é esse? Considerações piedosas muito bonitas, que não incomodam ninguém, e assim muitos gostariam que fosse a pregação”.

Essa crise é, no fundo, uma escolha entre a adoração do Deus verdadeiro e a idolatria. “Muitos gostariam, sim, como diz a canção, de um Deus de bolso, um Deus que se acomode aos meus ídolos, um Deus que se contente com como pago meus funcionários, um Deus que aprove meus atropelos. Como algumas pessoas podem rezar a esse Deus o pai-nosso, se na verdade o tratam como um dos seus serventes e funcionários?”, questionou Romero. É que “uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas” é idolatria, “não agrada ao Senhor”.

Essa idolatria também precisa ser desmascarada quando somos tentados a identificar algum projeto político específico com a obra da salvação realizada por Deus. Em outras palavras, essa realidade salvífica – que o evangelho chama de Reino de Deus – não pode ser apropriada por ninguém. A Igreja, consciente da sua vocação, pode iluminar diversos caminhos políticos, mas não se identifica nem identifica o Reino com nenhum deles. Deus não deseja que o seu nome seja manipulado para que um grupo ou uma instituição se autojustifique: o que ele deseja é vida em abundância para todos. O critério distintivo é esse, o amor: “Se houvesse amor ao próximo, não existiriam terrorismos, nem repressão, nem egoísmos, nem desigualdades tão cruéis na sociedade, nem sequestros, nem crimes. O amor é a síntese da lei; e não só a síntese: é o que dá um sentido cristão a todas as relações humanas”, afirmou Romero.

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“Há um critério para saber se Deus está próximo ou longe de nós”, indicou o arcebispo, partindo da parábola do juízo final, narrada no capítulo 25 de Mateus. “Todo aquele que se preocupa pelo faminto, pelo nu, pelo pobre, pelo desaparecido, pelo torturado, pelo prisioneiro, por toda essa carne que sofre, tem Deus perto de si”. Assim, mesmo os que se dizem ateus podem ser mediadores da obra de Deus, se se colocam gratuitamente a serviço da vida do outro, cumprindo “com a essência da relação que Deus quer entre os homens”.

Essa presença de Deus, ainda que não nomeada, é o que constitui a sua própria obra salvífica no meio de um povo. “Que áridos somos quando não está em nós o Espírito Santo! Que cruéis se tornam os homens quando não os anima o Espírito de Deus, e sim o espírito de se dar bem nesta terra! Já me dói muito a alma saber como se tortura o nosso povo, como se atropelam os direitos da imagem de Deus. Não deveria haver isso”, lamentava Romero. “É que o homem sem Deus é uma fera, o homem sem Deus é um deserto; seu coração não tem flores de amor, seu coração não é mais do que o perverso perseguidor dos irmãos”.

Recordando o episódio do evangelho em que Jesus afirma não ter visto tanta fé em Israel quanto viu no centurião romano que lhe pediu a cura de um servo, Romero afirmou: “Cristo também dirá desta Igreja: fora dos limites do catolicismo talvez haja mais fé, mais santidade. Por isso não temos que extinguir o Espírito. O Espírito não é monopólio de um movimento, de um movimento cristão, de uma hierarquia, de um sacerdócio nem de uma congregação religiosa. O Espírito é livre e busca que os homens, onde quer que se encontrem, realizem a sua vocação de se encontrar com Cristo, aquele que se fez carne para salvar toda carne humana”. 

Servi-lo nessa carne humana crucificada pela violência e pela injustiça – ainda que sem o saber, como os personagens da parábola do juízo final – é o que constitui o verdadeiro louvor e o prolongamento da sua obra salvífica neste mundo. À Igreja cabe a missão de reconhecer a ação do seu Senhor onde existe o amor e a justiça. Porque ele já está lá: “Cristo está na história. Cristo está nas entranhas do povo. Cristo já está operando os novos céus e a nova terra”.

Oscar Romero (1917-1980) foi um arcebispo e mártir católico salvadorenho. Arcebispo de San Salvador, ergueu a voz contra o regime, denunciando uma série de violações aos direitos humanos. Foi assassinado enquanto presidia a eucaristia, fuzilado por um atirador de elite do exército salvadorenho. Foi canonizado pelo Papa Francisco em 2018.

Felipe Koller é mestre e doutorando em Teologia pela PUCPR e professor visitante da Faculdade de São Basílio Magno e da Católica de Santa Catarina.