Testar rotineiramente metais em crianças com transtorno do espectro autista é algo que deve ser questionado e evitado. Essa é a conclusão recente da Academia Americana de Pediatria, que publicou esta e outras recomendações a médicos e pacientes dentro da iniciativa Choosing Wisely.
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Segundo esse documento, o teste deve ser evitado tanto por não haver associação conclusiva dessas exposições toxicológicas com o desenvolvimento do autismo, quanto por que o teste de metais pode ser prejudicial se o tratamento for orientado com base nesses resultados.
Essas recomendações partem do princípio da medicina “primum non nocere”, em latim: primeiro, não prejudicar, como explica o presidente do Departamento Científico de Toxicologia e Saúde Ambiental da Sociedade Brasileira de Pediatria, Carlos Augusto Mello da Silva. “A medicina deve ser usada com sabedoria, poupando a criança ainda mais, pois que ela é um ser em desenvolvimento e já tem ameaças suficientes nessa fase para ter de comportar exposições desnecessárias que não levam a nada”, diz ele.
Os testes de metais pelo sangue já foram usados no país, e eventualmente em adultos, em casos de exposição ao chumbo, uma das poucas ou a única indicação do exame, segundo ele. Mas o exame é indicado só quando há circunstância ambiental ou de saúde do paciente.
“Hoje são formalmente contraindicados porque não servem como bom meio diagnóstico e podem ser perigosos, caso levem ao procedimento de quelação, por exemplo, que retira o metal do sangue, mas que junto pode retirar também o cálcio, quando não for utilizado o quelante correto, e causar hipocalcimia, inclusive existindo óbitos reportados pela prática”, diz. O teste por cabelo não é indicado, principalmente por estar exposto a uma série de contaminações externas.
Metais causam doenças?
Há doenças relacionadas a metais pesados, a exemplo do cádmio e mercúrio na Ásia, por exemplo, mas no Brasil o que mais preocupa é o chumbo, que afeta o desenvolvimento neurológio e a aprendizagem e também atinge adultos. O metal pode vir de várias fontes, com a contaminação ocorrendo principalmente a partir de mineração, do contato com baterias de automóveis, maquinas agrícolas e caminhões.
“O mercúrio também preocupa, mas principalmente no Centro-Oeste e na Amazônia, por ser usado na busca de ouro. O metal tem contaminação documentada, entra na cadeia alimentar, em algas microscópicas, depois vai para peixes pequenos e grandes, podendo causar concentrações preocupantes”, diz ele.
Mello da Silva diz que dificilmente moradores de áreas urbanas conseguiriam se contaminar com os metais em uma quantidade suficiente para causar danos. Nos Estados Unidos, segundo ele, onde em áreas urbanas e mais pobres há prédios das primeiras décadas do século 20, estudos mostraram que canos de água feitos de chumbo poderiam causa contaminação, assim como tintas usadas até a década de 60 e 70, que continham o pigmento de chumbo. “As pilhas recarregáveis, por terem zinco, cádmio, oferecem algum risco, mas hoje muito menos que décadas atrás, quando costumávamos vê-las vazarem. Hoje elas são superblindadas, mas elas não podem ser jogadas em lixo comum”, diz ele.
Exames sem necessidade
O pedido de uma bateria de exames toxicológicos, que às vezes elenca 30 substâncias diferentes, não tem valor, somente se tiver ocorrido um acidente industrial ou por contaminação ambiental constatada. Porém, muitos profissionais de saúde ainda pedem esse tipo de exame, que gera apenas confusão.
Segundo Mello da Silva, quem costuma pedir esse tipo de exame são outros profissionais não pediatras, havendo até quem envie resultados aos Estados Unidos, que retornam, por vezes, com informações adicionais em inglês, o que cria ainda mais confusão. “Porém, o paciente, quando se vê confuso, acaba procurando o pediatra: ele vai ao ‘aventureiro’, mas depois volta ao profissional. Isso porque o fato de achar um valor não quer dizer que aquilo seja uma intoxicação ou que deva ser tratado”, diz.
Acontece que tudo tem limiares, mas estar fora da faixa não quer dizer ou que há problemas, ou que não possa ser corrigido com pequenas intervenções. “Além daquele valor encontrado, que pode estar um pouco abaixo ou acima do limiar, o profissional deve avaliar o conjunto do paciente: um resultado laboratorial não significa que se deva tomar alguma atitude”, diz o representante da Sociedade Brasileira de Pediatria, apontando que agrava ainda mais a confusão o avanço nos exames, que conseguem verificar substâncias em nanogramas. “As máquinas de laboratórios e essa parte da química analítica, tudo evoluiu absurdamente e consegue detectar traços de uma substância no sangue, mas mesmo fora de padrões internacionais, isso não significa risco imediato à saúde do paciente”, diz.
Metais e autismo
A relação entre o autismo e causas ambientais, segundo Mello da Silva, ainda não foi determinada, mas sabe-se que cerca de metade dos casos teria causa genética ou por outras causas, como a idade avançada dos pais e traumas de parto. “Alguns estudos mostram relação mais forte entre o autismo e o impacto de metais como chumbo e mercúrio e ainda estão sendo estudados os ftalatos, produtos químicos usados em plásticos, e pesticidas, mas ainda não há nada conclusivo”, diz ele, apontando que também são estudadas as ações de causas ambientais relacionadas a disruptores endócrinos, que poderiam interferir no sistema endócrino, também responsável pelo desenvolvimento normal do sistema nervoso central.
A grande questão, então, sobre o uso de exames de metais com o objetivo de tomar alguma decisão relacionada ao autismo é que o resultado não redunda em medida terapêutica, mesmo que não-medicamentosa. Se você faz um exame e isso não produz uma conduta que leva a benefício, o exame é inútil. “Mas como a família do portador do espectro de autismo quer respostas, pode chegar a pessoas sem escrúpulos que sugiram coisas exóticas. É preciso ser sincero e não alimentar falsas expectativas. Isso às vezes é doloroso, mas deve ocorrer sempre na relação médico-paciente”, diz ele.
Encontrar um resultado anormal pode levar a tratamentos imprudentes, isso porque não existe tratamento pra autismo que tenha relação com exposição ambiental, somente em casos de alta exposição em ambientes com chumbo e mercúrio. “Tratamento de autismo não é tratamento toxicológico, pois nem todos os casos têm relação com isso. A terapêutica acaba sendo principalmente de treinamento de habilidades, entre outras”, diz ele.
Quando são indicadas
Segundo Mello da Silva, terapias para eliminação de metais pesados do corpo são indicadas para níveis tóxicos de alguns metais, chumbo, mercúrio, arsênico. Quando chegam a limiares importantes há tratamento especializado, administração de medicamentos e seguimento com análises de sangue ou urina, mas apenas em casos de doenças expressas por esses metais. “Como é doença ambiental, envolve mudança na proteção do trabalhador, como ocorre hoje na produção de baterias para carro, por exemplo, que não promove mais o contato com produtos potencialmente tóxicos”, finaliza.