O anúncio de um possível tratamento contra a Covid-19 pelo centro médico Ichilov, de Israel, na última semana, chamou atenção de pacientes, médicos e pesquisadores. Nomeado de EXO-CD24, a nova tecnologia mudaria a forma de tratar doenças que atrapalham o sistema imunológico, como a infecção pelo Sars-CoV-2.
Na sexta-feira (12), no Twitter, Jair Bolsonaro disse que tratou com o primeiro-ministro de Israel, Benjamim Netanyahu sobre a "participação do Brasil na 3ª fase de testes do spray EXO-CD24". Nesta segunda-feira (15) o presidente do Brasil citou novamente o remédio ainda em estudo.
Dos 30 pacientes com casos moderados a grave da Covid-19 que foram testados com a substância, 29 tiveram uma recuperação completa em cinco dias. Em média, um paciente que desenvolve quadros mais severos da doença permanece internado por até três semanas.
Siga o Sempre Família no Instagram!
O número de participantes, no entanto, é muito baixo para concluir a eficácia da substância, e não houve também uma comparação com um grupo controle — pacientes que não receberam o EXO-CD24. Não ficou claro, ainda, qual foi o tratamento completo que esses participantes receberam, além da substância em teste. Como explica o farmacêutico Leandro Medeiros, sem essas informações, não há como afirmar o papel exato do EXO-CD24 contra a Covid-19.
"O que se espera é a publicação sobre esse estudo, para entender como os pacientes foram selecionados e como foram manejados, se foram dados anticoagulantes, ou a dexametasona, que é um corticoide com evidência científica [contra a Covid-19]. Sem isso, não dá para dizer com segurança", explica o especialista, que é professor e pesquisador de Farmacologia na Universidade Católica de Pernambuco.
Além disso, como o teste está em fase muito inicial, talvez não haja tempo suficiente para que atue contra a Covid-19, de acordo com Eliana Martins Lima, professora titular de Nanotecnologia Farmacêutica da Universidade Federal de Goiás. Isso não impede que possa ser um tratamento futuro contra outras condições, como alguns tipos de câncer.
De acordo com os especialistas ouvidos pelo Sempre Família, o EXO-CD24 não pode ser considerado um medicamento por enquanto. Mas é, sim, um candidato promissor.
O que o EXO-CD24 faz?
Para explicar a ação do EXO-CD24, é preciso lembrar como o Sars-CoV-2 atrapalha o sistema imunológico. Na tentativa de conter o coronavírus, o organismo de algumas pessoas acaba gerando uma resposta exacerbada, causando a chamada "tempestade de citocinas".
Citocinas são moléculas conhecidas por serem as sinalizadoras de que algo está em perigo. Elas são liberadas pelos macrófagos e pelas células dendríticas, que compõem a linha de frente de combate do sistema imunológico. Ao atacarem um microrganismo invasor, essas células liberam as citocinas, que vão recrutar as demais células imunológicas.
Em algumas pessoas, a liberação das citocinas é tão grande que gera um evento inflamatório exagerado e, pior, nos pulmões. "Todo processo inflamatório origina um acúmulo de líquidos e de outras células, de resíduos celulares. Nos alvéolos pulmonares, qualquer acúmulo de líquido impede as trocas gasosas que são fundamentais para a respiração", explica Eliana Lima, professora de Nanotecnologia Farmacêutica e membro da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas e da Academia Nacional de Farmácia.
Entra, então, o papel do EXO-CD24. A substância é composta de duas partes: EXO e CD24.
- EXO é uma abreviação de exossomas, ou vesículas que são liberadas de uma célula e capturadas por outra, facilitando a comunicação entre elas. No interior dessas vesículas, as células inserem as proteínas, ou as "mensagens", que serão protegidas por esse "envelope".
- As CD24 são proteínas que agem como marcadores ou sinalizadores de superfície celular. No caso da CD24, sabe-se que ela está presente em quantidades exageradas em algumas células cancerígenas. Nadir Arber, um dos autores do estudo, faz parte do Centro Integrado de Prevenção ao Câncer de Ichilov e pesquisa há anos a substância contra o câncer de ovário, por exemplo.
Uma das funções da proteína CD24 é sinalizar ao sistema imunológico que aquela célula em que ela está presente não deve ser destruída. De acordo com Lima, na literatura científica essas proteínas marcadores são literalmente conhecidas como "do not eat me", ou "não me coma". Por isso que, no caso do câncer, os tumores acabam se desenvolvendo sem que o sistema de defesa do organismo tenha a chance de destruí-los.
Já para a Covid-19, os pesquisadores inseriram nos exossomas, ou EXO, as proteínas CD24, entregando a substância para os pacientes de forma inalada. Assim, o "medicamento" chegaria diretamente aos pulmões e as proteínas CD24 poderiam, rapidamente, diminuir a ação exagerada do sistema imunológico no local.
"A estratégia desse tratamento foi 'povoar' os tecidos pulmonares com o CD24, para que os macrófagos, que estão chegando ali para poder combater a infecção, se deparem com uma molécula que diz a eles 'isso aqui é amigo'. E assim, evitar, ainda que em um determinado grau, o processo de fagocitose e a liberação de todas aquelas citocinas", detalha Lima.
A indicação do EXO-CD24 seria apenas para pacientes internados, que acabaram desenvolvendo uma forma moderada a grave da doença, decorrente dessa resposta inflamatória exagerada. A substância não seria indicada a pacientes com sintomas leves, visto que eles não teriam uma "tempestade de citocinas" para combater.
Alternativa
Do ponto de vista de inovação científica, a estratégia é considerada extremamente interessante, segundo a pesquisadora de Nanotecnologias Farmacêuticas. Para que isso se torne um tratamento efetivo contra a Covid-19, no entanto, ainda é preciso mais estudos e tempo.
"Eu não acredito que esse EXO-CD24 ficará disponível para tratar a Covid-19 em um curto espaço de tempo. Agora, o que essa descoberta abre em termos de perspectivas para outras doenças, nas quais o tratamento use um processo de imunomodulação, isso pode ajudar a mudar nossas perspectivas de muitos tratamentos, inclusive para tumores", explica Eliana Lima.
No contexto da Covid-19, o professor e pesquisador de Farmacologia Leandro Medeiros lembra que, hoje, existe outro medicamento que vem sendo usado com resultados semelhantes, que é a dexametosona.
"A dexametasona é um corticoide que tem um papel anti-inflamatório, reduzindo a produção das citocinas e de outros agentes inflamatórios, e já está incorporada em protocolos de tratamento para a Covid-19", destaca.
Desde a divulgação dos resultados do estudo RECOVERY, em junho de 2020, a dexametasona ganhou destaque no combate dos efeitos exagerados do sistema imunológico diante do coronavírus. A indicação é apenas para pacientes internados, com quadros mais graves da doença, e não para quem tem sintomas leves.
Isso porque a ação do remédio visa reduzir a reação do sistema imunológico. Caso seja tomada na fase inicial da doença, com sintomas leves, em vez de o corpo continuar atuando sozinho contra o agente infeccioso, a defesa seria reduzida pela medicação, abrindo caminho para uma maior replicação do vírus — aumentando o risco de agravamento da doença.