A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou nesta sexta-feira (12) o registro do remdesivir, medicamento desenvolvido pelo laboratório norte-americano Gilead para uso em pacientes hospitalizados pela Covid-19.
Em julho do ano passado, a medicação havia recebido a autorização provisória de uso pela União Europeia e, em outubro, pela agência regulatória norte-americana, o FDA.
O remdesivir é membro de uma das classes mais antigas e importantes de medicamentos, conhecidos como análogos de nucleosídeos. Atualmente, há mais de 30 tipos de medicamentos como esse que receberam a aprovação para serem usados em tratamentos de doenças virais, cânceres, parasitárias, assim como contra infecções bacterianas e de fungos, e muitos outros estão, nesse momento, em ensaios clínicos e pré-clínicos.
Contra a Covid-19, trata-se do primeiro medicamento aprovado para uso por diferentes países, mais recentemente o Brasil. A eficácia do remdesivir, no entanto, ainda não está clara.
Um estudo conduzido por pesquisadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) analisou diferentes remédios já utilizados contra outras doenças, entre eles o remdesivir, e concluiu que a ação contra a mortalidade dos pacientes com Covid-19 não parece ser significativa.
De acordo com dados da pesquisa Solidarity, dos 2.743 pacientes hospitalizados que receberam o medicamento, 11% morreram, contra 11,2% em um grupo de controle de tamanho semelhante. A diferença entre os dois grupos foi pequena, demonstrando uma baixa eficácia da medicação na mortalidade.
Para embasar a aprovação pela Anvisa, no entanto, a agência leva em consideração os dados de outro estudo, publicado na revista científica New England Journal of Medicine (NEJM) em novembro. A pesquisa avaliou 1062 pacientes divididos em dois grupos: os que receberam a medicação e os que estavam no grupo controle.
Nos resultados, os pesquisadores perceberam que a medicação reduziu o tempo de internamento pela Covid-19. Os pacientes que receberam o remédio se recuperavam, em média, em 10 dias, enquanto que os pacientes que não receberam essa medicação tinham um tempo de recuperação de 15 dias.
Como o remdesivir age contra o vírus?
O motivo pelo qual os análogos de nucleosídeos [classe de medicamentos da qual o remdesivir faz parte], e um grupo similar chamado de análogos de nucleotídeos, são tão efetivos é porque eles se assemelham às moléculas que ocorrem naturalmente, conhecidas como nucleosídeos – citosina, timina, uracila, guanina e adenina.
Esses são os "blocos de construção" essenciais para o DNA e o RNA (ácido desoxirribonucleico e o ácido ribonucleico, respectivamente), que carregam nossas informações genéticas e têm um papel crítico nos processos biológicos do nosso corpo.
Pequenas diferenças na estrutura química desses análogos dos componentes, que são produzidos naturalmente, tornam-nos drogas efetivas. Se um organismo, como um vírus, incorporar um análogo de nucleosídeo ao seu material genético, ao invés do nucleosídeo real, mesmo pequenas mudanças na estrutura desses "blocos de construção" previnem que a reação química regular aconteça e, por fim, prejudica a capacidade de o vírus se replicar.
A estrutura básica de um nucleosídeo inclui um grupo de açúcar e uma base (A, C, G, T ou U), e no caso de um nucleotídeo, um grupo contendo fosfato, que é uma coleção de átomos de oxigênio e fósforo.
Os primeiros análogos de nucleosídeos foram aprovados para uso medicinal na década de 1950. Esses nucleosídeos tinham apenas modificações simples, tipicamente na parte do açúcar ou da base. Já os nucleosídeos atuais, como o remdesivir, têm várias modificações em suas estruturas. Essas mudanças são essenciais para a atividade terapêutica.
Como o remdesivir atua como um antiviral?
Essa atividade acontece porque o análogo de nuclesídeo (ou o nucletídeo) imita tão bem a estrutura do nucleosídeo ou do nucletídeo natural a ponto de ser reconhecido pelos vírus, por exemplo. Devido a essas mudanças estruturas, no entanto, eles param ou interrompem a replicação viral, que impede que o vírus se multiplique e infecte mais células do corpo.
Como resultado, eles são conhecidos como antivirais de ação direta, e esse é o caso do remdesivir, que trabalha bloqueando o RNA polimerase do coronavírus - uma das enzimas-chave que o vírus precisa para replicar o seu material genético (RNA) e proliferar dentro do corpo humano. O remdesivir atua quando a enzima, que replica o material genético para uma nova geração de vírus, acidentalmente agarra esse análogo de nucleosídeo, ao invés da molécula natural, e o incorpora à cadeia de RNA. Isso, essencialmente, bloqueia a replicação do restante do RNA; e, assim, previne que o vírus se multiplique.
O medicamento remdesivir é basicamente uma versão alterada do "bloco de construção" natural, a adenosina - que é essencial para o DNA e para o RNA. Comparando a estrutura do remdesivir com a adenosina, é possível ver que há três modificações-chave que o tornam efetivo.
A primeira é que o remdesivir, como é administrado, não é a verdadeira substância ativa: é na verdade um "prodrug" ou uma pró-droga, que deve ser modificada, uma vez no corpo, antes de se tornar ativa. "Prodrugs" são usadas por muitas razões, inclusive pela proteção da substância até que ela atinja o local de ação no organismo. A forma ativa do remdesivir contém três grupos de fosfato e é essa a forma que é reconhecida pela enzima RNA polimerase do vírus.
A segunda modificação importante no remdesivir é o grupo Carbono-Nitrogênio (CN), anexado ao açúcar. Uma vez que o remdesivir é incorporado à cadeia de RNA crescente, a presença desse grupo CN faz com que a forma do açúcar se enrugue e, por consequência, distorce a forma da cadeia de RNA de tal maneira que somente três outros nucleotídeos podem ser adicionados. Isso finaliza a produção da cadeia de RNA e é o que, finalmente, provoca a sabotagem da replicação do vírus.
A terceira importante característica estrutural que faz com que o remdesivir se diferencie da adenosina é a mudança em uma ligação química específica na molécula. Ao invés de uma ligação que conecte os átomos de carbono e nitrogênio, os químicos substituem o nitrogênio por outro carbono, criando uma ligação carbono-carbono. Esse ponto é crítico para o sucesso da substância porque os coronavírus possuem uma enzima especial que reconhece os nucleosídeos e os retira. Mas, ao mudar essa ligação química, o remdesivir não pode ser removido pela enzima do vírus, e permanece na cadeia, bloqueando a replicação.
Outros estudos com o remdesivir
Originalmente, o remdesivir foi encontrado em um programa voltado à descoberta de medicamentos do laboratório biofarmacêutico Gilead, durante a procura por inibidores do vírus causador da hepatite C, que é outro RNA viral. Embora a Gilead tenha selecionado, por fim, um análogo de nuclesídeo diferente para o tratamento da hepatite, a marca testou a substância para verificar a eficácia contra outros RNA virais.
O remdesivir mostrou uma atividade importante contra o Ebola e o vírus respiratório da síndrome do Oriente Médio (MERS), entre outros.
Contra a Covid-19, de acordo com informações da National Institute of Health (NIH), os pacientes que receberam o remdesivir tiveram uma recuperação mais rápida em comparação aos que receberam o placebo: 11 dias em relação a 15 dias para os que não tomaram o medicamento. "Os resultados também sugerem um benefício na sobrevida, com uma taxa de mortalidade de 8% no grupo que recebeu o remdesivir, versus 11.6% no grupo que recebeu o placebo", de acordo com o comunicado da NIH.
Apesar disso, é preciso ter muita cautela. Conforme destacado por Anthony Fauci no programa norte-americano Today Show, do canal televisivo NBC, "o medicamento antiviral remdesivir é o primeiro passo no que nós projetamos que será melhor, e drogas melhores virão" para tratar a Covid-19, mas ele adverte: "essa não é a resposta completa".
Eu compartilho essa visão com muitos outros cientistas da área. Independentemente do que esses resultados mostrarem, o remdesivir fará parte, certamente, de um coquetel de medicamentos, assim como é padrão para o tratamento de outros vírus, como HIV e hepatite C.
A combinação, ou um coquetel, de medicamentos dará um tratamento mais completo e efetivo, que bloqueará a replicação do vírus. Outro benefício desse coquetel de substâncias é que diminui a chance de o vírus desenvolver resistência à terapia. Enquanto isso, os resultados iniciais do remdesivir estão mostrando ser uma importante fonte de esperança para muitos de nós ao redor do mundo, enquanto esperamos que essa pandemia diminua.
*Katherine Seley-Radtke é professora de Química e Bioquímica da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e presidente-eleita da Sociedade Internacional de Pesquisa Antiviral.
©2020 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.