Em fevereiro, durante o Carnaval, o cirurgião Akihito Urdiales recebia os primeiros treinamentos do que era o Sars-Cov-2 e como os profissionais da saúde precisavam se proteger da Covid-19. Na época, havia o temor do desconhecido e a esperança de que passasse rápido. Mas a realidade se sobrepôs ao otimismo de muitos. Dentre eles, Urdiales.
Desde março, todas as semanas, o cirurgião de Emergência do Hospital das Clínicas/UFPR, cirurgião do Trauma do Hospital do Trabalhador, professor do curso de Medicina da UFPR e instrutor a American Heart Association - HCor, em São Paulo, comanda treinamentos de paramentação e desparamentação (colocação e retirada dos equipamentos de proteção individual, ou EPIs) e observa, dentro e fora do hospital, o modo como a pandemia tem sido enxergada.
"No trato com o paciente, você está protegido, você toma os cuidados. Mas não está aí o risco maior. Está na hora de retirar o EPI, as máscaras, óculos, visores, os aventais. Se você tocar neles e não se descontaminar, até que se prove o contrário, está em risco de se contaminar", explica o médico, que relatou a rotina, desafios e anseios sobre a Covid-19. Veja a entrevista:
Como são os treinamentos para profissionais da saúde contra a Covid-19?
Os protocolos de cirurgia mudaram totalmente e ainda mudam. Como não tem nem vacina, nem remédio, vamos aprendendo. Lá no início, em fevereiro e março, começamos com o treinamento de profissionais para a paramentação e desparamentação, porque você precisa se proteger e aprender a retirar essa proteção. Aprendemos com os chineses que é nesse momento que os profissionais da saúde se contaminam e a mortalidade aumenta.
No trato com o paciente, você está protegido, você toma os cuidados. Mas não está aí o risco maior. Está na hora de retirar o EPI, as máscaras, óculos, visores, os aventais. Se você tocar neles e não se descontaminar, está em risco. E para isso, tem que treinar.
Qual é a frequência desses treinamentos?
Toda semana. Não tem uma semana desde março que não fazemos os treinamentos de paramentação. São mais de 700 profissionais até o momento que já foram treinados. Fazemos com os mesmos profissionais, porque há sempre novidades, e com os que estão entrando na linha de frente, que já foi trocada umas 10 vezes.
Muita coisa mudou do treinamento recebido na faculdade?
Antes não usávamos obrigatoriamente os óculos ou o visor, face shield. Hoje sim. Não usávamos a máscara N95. Antes, ao fim da cirurgia, o médico tirava o avental, a máscara ficava pendurada. Tirava a luva pegando pela mão mesmo. Se o médico não tivesse se contaminado com sangue e secreção do paciente, como em uma cirurgia laparoscópica, ele tirava a luva, desamarrava o avental pela parte da frente, baixava a máscara e ia tomar café. Hoje é diferente.
Depois da pandemia, haverá confiança maior na comunidade científica?
Essa pergunta é difícil, porque foram tantos desencontros de previsão, de desconhecimento da doença. A medicina é baseada em evidência, são décadas (e mesmo séculos) desenvolvendo estratégias e medicamentos, e agora falamos de uma doença muito grave, de apenas seis meses de idade.
Como tem sido o desgaste emocional, além do físico, durante a pandemia?
O desgaste emocional está mais em quem continua nessa luta para convencer quem nega que a Covid-19 existe, que não tem tratamento, que a vacina é remota, e que a única arma que temos é distanciamento, higiene correta das mãos, não levar a mão ao rosto e evitar aglomeração.
Vemos muitas pessoas retomando atividades acreditando que o pico já passou...
Só vamos enxergar o pico pelo retrovisor. Uma vez por ano vou de motocicleta para o Peru, terra da minha família, e atravesso a Cordilheira dos Andes. Quando subo, sei que não posso ficar muito tempo em cima, vai fazer hipóxia [redução do oxigênio nos tecidos], posso ter problemas. Tem que subir e descer rápido. Quando olho pelo retrovisor, eu vejo o pico. É a metáfora para a pandemia: só vamos enxergar o pico pelo retrovisor. Não adiantam projeções. Centenas de epidemiologistas erraram, e estão errando, porque não tem ainda como prever.
O negacionismo é difícil de combater?
E há negacionismo em toda parte, não só no público leigo. Inclusive médicos negacionistas. Eu tenho vários colegas que não acreditam, que teimam que é exagero [a Covid-19].
Claro, há o fator econômico que impacta nesse pensamento, pelo contingenciamento das cirurgias eletivas, afinal por que você vai operar uma eletiva no meio de uma pandemia? O paciente pode estar doente e contaminar um hospital inteiro, ou o contrário, pode entrar bem e ser cuidado por um profissional contaminado. Podemos, inclusive, teoricamente, ser processados criminalmente, porque expôs o paciente sabendo que não precisava da cirurgia.
Então, é muito mais complicado conscientizar a sociedade quando, além de termos os pacientes que não aceitam orientação e vão atrás da internet e de fake news, também existirem profissionais de saúde que negam a gravidade da pandemia. Aí começamos a entender a complexidade de tentar montar qualquer estratégia de conscientização.