Quando a comunidade científica mundial passou a estudar diferentes tratamentos que pudessem ter uma ação contra o novo coronavírus, a proteína interferon beta foi incluída no rol das pesquisas. Um dos braços de estudos do esforço Solidarity, da Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, avalia a ação dessa substância no contexto da Covid-19, assim como outros 79 estudos, de acordo com dados da plataforma ClinicalTrials.gov.
Conhecido como um potente antiviral e um regulador do sistema imunológico, o interferon é produzido normalmente pelo organismo, mas pode ter sua capacidade reduzida no momento de uma infecção viral ou uma doença autoimune. Aplicar a substância, portanto, tende a ajudar o corpo a se proteger.
"O vírus entra na célula e começa a se reproduzir. Nisso, a célula envia um sinal de que foi infectada e começa-se a produzir o interferon, que cai na circulação, vai até a área de infecção e ativa um gene nas células vizinhas para que elas não sejam atacadas também. O interferon monta uma resposta imune que vai reagir com as células infectadas. Isso é muito descrito na literatura. Ele é um potente retroviral", descreve Sandra Farsky, farmacêutica, professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas.
Devido a essa ação, segundo Daniel Mansur, virologista e professor de Imunologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o interferon faz parte da primeira linha de defesa do organismo e, justamente por isso também acaba sendo "alvo" dos agentes infecciosos.
"Cada vez mais estudos provam que pacientes mais graves da Covid-19 têm uma falta dessa resposta do interferon beta, e isso pode ter duas interpretações: ou a pessoa não produziu o interferon na hora certa, ou o vírus ativamente bloqueou os efeitos desse interferon", explica o virologista. "Especula-se que o vírus mexa muito com o sistema imunológico, como era com o MERS [síndrome respiratória do Oriente Médio, cujo causador é o vírus Sars-Cov], que é da mesma família [do Sars-Cov-2, causador da Covid-19]. Ele desregula a resposta imunológica, desregulando a resposta do interferon. A natureza faz isso. Da mesma forma que o vírus ataca, ele tenta se proteger", completa a farmacêutica.
Atualmente, o interferon é usado no tratamento de doenças como a hepatite, pela função antiviral, e a esclerose múltipla, pela regulação do sistema imunológico.
Resultados preliminares
Na última segunda-feira (20), a empresa britânica Synairgen divulgou resultados preliminares de um estudo clínico com o interferon beta entre pacientes da Covid-19. Os dados iniciais apontam uma redução de 79% no risco de agravamento da doença entre os participantes que receberam a substância, em comparação ao grupo placebo.
De acordo com as informações divulgadas pela fabricante do medicamento, as pessoas que receberam o interferon beta tinham duas vezes mais chance de recuperação. Os pesquisadores, no entanto, não divulgaram mais detalhes, como em que momento da doença os pacientes receberam a medicação.
"De longe, pelos medicamentos vistos até agora, parece ser o mais efetivo até o momento. Bem mais que o remdesivir, que é um antiviral direto. Mas não temos acesso aos dados. Não sabemos quem tratar, se é a pessoa já internada ou a que está chegando agora. Apesar de parecer muito promissor, nessa pandemia já vimos várias vezes que o que parece promissor nem sempre é. Os resultados são animadores, mas devem ser vistos com cautela", explica Daniel Mansur, virologista e professor de imunologia.
Por inalação
Outro detalhe que chama atenção dos especialistas é que, na pesquisa, o interferon beta foi aplicado por inalação, com um nebulizador, de forma a atingir mais rapidamente a área mais afetada pela doença, o pulmão. De acordo com Sandra Farsky, farmacêutica, há lógica nessa via de aplicação, que tem sido estudada para outras medicações, inclusive vacinas. "Se o vírus entra por ali, e a pessoa está infectada, começa pela via intranasal, que tem sido muito usada, até como via de vacinação", diz.
A pesquisa avaliou 101 pessoas, e atende os padrões considerados "ouro" nos estudos clínicos, sendo randomizada (quando os participantes são distribuídos entre grupos de forma aleatória), com braço controle por placebo (quando parte dos participantes recebe uma medicação sem efeito) e duplo-cega (quando nem os pesquisadores e nem os voluntários sabem o que vão receber). No entanto, os resultados não foram revisados por outros pesquisadores ainda e nem publicados em revistas científicas.