Quando boa parte da população mundial tiver sido infectada, com sintomas ou não, pelo novo coronavírus, talvez a doença não seja um desafio tão grande quanto tem sido agora. Essa é a expectativa dos especialistas, mas não é um fato que possa ser visto como verdade por enquanto.
Isso porque, ainda sobram muitas dúvidas entre as autoridades de saúde com relação aos pacientes recuperados da Covid-19. Uma delas é saber se a pessoa realmente desenvolve anticorpos, ou tipos de células de defesa, que vão ajudá-la a prevenir-se da doença no futuro. E se esse "futuro" representa uma proteção que durará por anos, meses, semanas ou dias.
Outra questão ainda em dúvida é com relação a quantidade de pessoas que precisarão terem sido expostas ao vírus para garantir uma proteção de "rebanho", conforme lembra Marina Caskey, professora associada de investigação clínica no Laboratório de Imunologia Molecular da Rockefeller University, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.
"Já vi percentagens diferentes, de 50%, 60% e 70% da população que precisaria ter tido o contato para termos a imunidade de rebanho, para que o conceito seja fato. Mas, embora a expectativa seja de que a imunidade seja protetora, não é algo completamente estabelecida", explica a especialista durante uma entrevista coletiva promovida pela Sociedade Brasileira de Imunologia, pela Agência Bori e com o apoio da RedeComCiência.
Na mesma entrevista, o pesquisador em atividade imune e tolerância da mucosa intestinal Daniel Mucida, que atua na mesma universidade norte-americana, lembra que a proteção de grupo foi testada em alguns países, sem alcançar os resultados esperados. "O Reino Unido, no início de fevereiro, propôs que a doença tomasse o seu curso e teve um aumento imediato no número de casos e mortes. Duas semanas depois, mudaram para o que todo mundo estava fazendo, o isolamento social. A Suécia também, dentre os países da Escandinávia, tentou a mesma ideia de imunidade de rebanho, e mudaram também. De forma empírica, a imunidade de rebanho natural não seria uma boa ideia", argumenta Daniel.
Qual é a memória das células de defesa?
Para algumas doenças, como a catapora, se a pessoa for infectada uma só vez, o sistema imunológico aprende a se defender de vírus como aquele e, em um próximo encontro, saberá o que fazer, e a doença não se instalará. No caso da Covid-19, os pesquisadores ainda não sabem se o nosso sistema de defesa consegue criar uma memória protetora para o futuro, e por quanto tempo.
"Não sabemos a eficiência, e nem quanto tempo dura. Apostar em uma imunidade de rebanho agora é loucura. Outro fator: se você apostar nisso como medida pública, você vai lotar os hospitais, porque não vai conseguir conter a infecção natural, e pode acontecer o que ocorreu na Itália", reforça o pesquisador Daniel Mucida.
O médico imunologista Marcello Bossois lembra ainda que não se sabe se o vírus pode ficar em estado de latência no organismo humano, como é o caso também da catapora. "O vírus fica no organismo e pode se manifestar mais tarde como herpes-zóster. Mas também tem a hipótese de o vírus estar em mutação e, apesar de produzir os anticorpos de memória, eles não seriam suficientes para proteger de outras mutações", explica o médico, que reforça que boa parte das informações relacionadas ao novo coronavírus são hipóteses, e não consenso.
Vacinação
Apesar de as vacinas ainda estarem em estudos e testes, elas poderão futuramente favorecer a proteção de grupo ou de rebanho, sem que as pessoas desenvolvam a infecção. Esse é, afinal, o papel delas.
Ao entrarmos em contato com pequenas partes, ou partes "mortas", dos vírus e bactérias, ensinamos o nosso sistema imunológico a nos defender da ameaça. Quando o agente patológico entra em contato comigo, vacinada, eu acabo protegendo quem estiver próximo a mim também.
A proporção de pessoas que devem ser vacinadas para manter essa imunidade de rebanho varia com as doenças, de acordo com informações do Instituto de Tecnologia de Imunobiológicos Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para o sarampo, por exemplo, a vacinação deve cobrir 95% da população. No caso da poliomielite, causadora da paralisia infantil, a cobertura deve ser de 80%. Abaixo desses valores, aumenta-se o risco de contaminação.