Das poucas certezas que se tem sobre a Covid-19 até o momento, uma delas parece ser de que a hidroxicloroquina e a cloroquina não serão as medicações usadas para combatê-la.
Depois de três grandes estudos envolvendo as substâncias apresentarem resultados desanimadores (sendo o mais recente publicado pela revista científica Lancet na última sexta-feira (22), a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou nesta segunda-feira (25) que suspendeu os ensaios clínicos com a hidroxicloroquina e a cloroquina no estudo global Solidarity.
Das justificativas, a entidade cita a pesquisa publicada na última semana, na qual foi feita uma análise retrospectiva dos registros médicos de mais de 96 mil pacientes, distribuídos por 671 hospitais nos seis continentes.
Como resultado, os pesquisadores perceberam que, além de não terem efeitos benéficos nas pessoas diagnosticadas com o novo coronavírus, os medicamentos aumentaram em até cinco vezes o risco de arritmias cardíacas mesmo entre quem não tinha problemas no coração. A pesquisa apontou também para um aumento no risco de mortalidade em relação ao grupo que não havia recebido esses remédios, sejam de forma isolada ou em combinações.
De acordo com a OMS, os medicamentos serão reavaliados e, mais tarde, as pesquisas poderão ser retomadas ou suspensas de forma permanente.
Podemos confiar na hidroxicloroquina contra a Covid-19?
Se a hidroxicloroquina, e a versão cloroquina, no início da pandemia foram uma esperança, hoje estão no fim da fila das prioridades dos especialistas. Essa conclusão está embasada nos resultados dos três últimos estudos, publicados no New England Journal of Medicine (NEJM), no Journal of the American Medical Association (JAMA) e, mais recentemente, no Lancet.
O primeiro, um estudo observacional, avaliou como responderam 1376 pacientes diagnosticados com a Covid-19 e tratados na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. Pouco mais da metade deles (58.9%) havia recebido a hidroxicloroquina e, destes, 85.9% fizeram uso da medicação nas primeiras 48 horas do internamento. "(...) o uso da hidroxicloroquina não foi associado nem com uma significativa redução, nem com aumento no risco do ponto final composto por entubação ou morte", concluem os pesquisadores.
No estudo do JAMA, uma análise retrospectiva observou os resultados clínicos a partir do uso da hidroxicloroquina, associada ou não ao antibiótico azitromicina, em 1438 pacientes internados também em Nova York. Da mesma forma que no estudo anterior, a conclusão foi semelhante: "o tratamento com a hidroxicloroquina, azitromicina, ou com ambos, comparado a um tratamento sem nenhum dos dois, não foi significativamente associada com diferenças na mortalidade hospitalar".
Até o momento, então, os estudos mostravam que a medicação não apresentava benefícios claros contra a Covid-19, e críticas importantes poderiam ser levantadas. Por exemplo: ao todo foram analisados poucos pacientes e em análises observacionais ou retrospectivas – nenhum considerado padrão-ouro, como uma revisão sistemática ou estudos randomizados e duplo-cego.
Hidroxicloroquina: por que não?
O estudo divulgado pela revista científica Lancet, no entanto, trouxe parte da resposta que os pesquisadores buscavam. Embora ainda seja uma análise retrospectiva de registros médicos, o grande número de pessoas avaliadas (mais de 96 mil) e a forma como foi conduzida tornam os resultados significativos, de acordo com os especialistas ouvidos pelo Sempre Família.
"Depois desse trabalho que saiu pelo Lancet, é possível ter uma excelente evidência de que a hidroxicloroquina e a cloroquina não são fármacos indicados para a Covid-19", explica Sandra Farsky, farmacêutica, professora titular da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas.
De acordo com a professora, além do número significativo de pacientes, eles foram separados em grupos importantes para a Covid-19: aqueles com doenças cardiovasculares, pulmonares, diabéticos e obesos, entre outros. Isso permitiu identificar pacientes que, mesmo com doenças que indicam quadros piores da Covid-19, não obtinham benefícios pelas medicações – mas tinham um aumento no risco da arritmia.
Pessoas que fizeram uso da hidroxicloroquina associada a um antibiótico, por exemplo, tiveram um risco cinco vezes maior de ter arritmia do que o grupo que não recebeu nenhum deles. "[Esses parâmetros] oferecem uma confiabilidade bem grande que não tinham estudos anteriores, que eram feitos com um número pequeno de indivíduos, sem controles adequados", reforça.
"Esse trabalho é um marcador, junto com os anteriores que vinham sido publicados. Eles reforçam que os médicos devem ser muito criteriosos para usar essas medicações, ou aqueles que ainda querem usá-la", explica Sandra.
A mesma interpretação é compartilhada por Viviane Alves, microbiologista do Instituto de Ciências Biológicas e chefe do laboratório de Biologia Celular e Micro-organismos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "É a mesma conclusão de outros estudos, mas que tinham menos pacientes. Não há estudo algum que mostre uma vantagem [no uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19]. E toda essa história começou com um estudo observacional com 16 pacientes na França, que viram um benefício pequeno, mas agora vemos esse estudo maior, muito bem feito, e a pergunta que fica é: por que tomar uma medicação que não traz benefício e ainda aumenta o risco?", questiona.
Efeitos cardíacos
Uma das críticas mais recorrentes ao fato de a hidroxicloroquina não ser indicada aos pacientes da Covid-19 tem sido o "real efeito" dos efeitos colaterais descritos. Para parte da população, inclusive a brasileira, se houvesse um risco tão grande associado a essa medicação, ela não seria usada há anos contra malária, lúpus e doenças reumáticas.
Esse é um equívoco entre quem não leva em consideração algumas diferenças importantes entre as doenças em questão, de acordo com Viviane Alves, microbiologista. "São dosagens diferentes e são doenças diferentes. As pessoas que a tomam há anos recebem acompanhamento médico, e não tomam por conta", explica.
Como lúpus e doenças reumáticas são, em geral, crônicas, a dosagem da medicação tende a ser menor, assim como o risco para arritmias, de acordo com Leonardo Régis Leira Pereira, farmacêutico, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto -USP, e também diretor da ABCF.
Arritmias são alterações no ritmo do batimento cardíaco. Assim, se o coração normalmente bate uma vez por segundo, o uso sem controle e orientação médica da hidroxicloroquina aumentaria o risco de o órgão bater mais ou menos no mesmo período, gerando uma falha, ou alterando o intervalo QT. A mudança no ritmo do batimento cardíaco pode desencadear quadros graves, como infartos. "Se o paciente recebe um kit de medicamentos que contenham a hidroxicloroquina e a azitromicina, sem fazer os exames necessários nessa população, ele estará usando um medicamento que não tem evidência científica que funciona para a Covid-19 e em pessoas que não sabem se têm algum problema cardíaco", reforça Pereira.
Na última semana, o Ministério da Saúde ampliou a possibilidade de uso da hidroxicloroquina por pacientes com quadros mais leves da Covid-19 no país. Até então, a Agência Nacional de Viilência Sanitária (Anvisa) permitia apenas o uso entre pacientes graves. Em resposta, a Sociedade Brasileira de Cardiologia emitiu uma nota de esclarecimento em que diz não recomendar o uso dessas medicações contra a Covid-19, e alerta:
"No entanto, para os pacientes que optarem pela realização do tratamento, orienta que, desde que resguardada as condições sanitárias necessárias para minimizar o risco de contágio de profissionais de saúde e outros pacientes, que sejam realizados eletrocardiogramas a fim de avaliar a evolução do intervalo QT, de forma a subsidiar o médico quanto a pertinência de se persistir no tratamento. Para tanto, a Telemedicina pode ser uma alternativa viável para suportar essa iniciativa."
Pode funcionar como prevenção?
Se os estudos apontam que a hidroxicloroquina, assim como a cloroquina, não têm efeitos benéficos entre pacientes graves da Covid-19, ela pode ter efeito no início do tratamento, ou mesmo de forma preventiva? Em ambos os casos é provável que não, segundo Leonardo Pereira, farmacêutico e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto - USP.
A resposta pode ser vista no mesmo estudo divulgado pela revista científica Lancet, que selecionou apenas pacientes que receberam a medicação nas primeiras 48 horas após os primeiros sintomas. "Nele se derruba a ideia de que a cloroquina funcionaria no começo. Se é uma medicação que atua na replicação viral, isso acontece nos primeiros sete dias. O que faltam agora são os estudos sobre a prevenção, mas se não deu certo nesse que avaliou com até 48 horas, a chance é muito pequena de que [a hidroxicloroquina] tenha uma ação preventiva", explica Pereira.
Pesquisadores britânicos deram início, no fim de maio, a um estudo com a medicação que visa avaliar um possível efeito preventivo. A pesquisa irá recrutar cerca de 40 mil participantes de países na Europa, Ásia e África, e os resultados preliminares estarão disponíveis no fim de 2020.
A hipótese não é nova, e outros achados podem ajudar a respondê-la, segundo Viviane Alves, microbiologista da UFMG. "Há estudos randomizados em todos os sentidos, olhando para a hidroxicloroquina na prevenção, em pacientes leves e graves. Até o momento não teve eficácia alguma comprovada em nenhum dos três níveis", reforça.
Ainda assim, estudos observacionais pequenos mostram que pessoas que já faziam uso crônico da hidroxicloroquina como tratamento de outras doenças não tinham uma proteção maior contra o novo coronavírus. Um deles, publicado no fim de maio na revista científica Journal of Antimicrobial Chemotherapy, trouxe o relatos de dois pacientes com quadros graves da Covid-19 e que faziam uso da medicação.
"Se prevenisse, todas as pessoas que fazem uso teriam uma menor incidência. Mas os estudos randomizados vão olhar para um número maior de pessoas e verificar essa ação. A nossa urgência em diminuir o número de internações e mortes e resolver a Covid-19 é mais rápida do que a ciência. Não se pode pular etapas científicas, e estamos mais rápidos do que em relação a doenças do passado", reforça Viviane.