O isolamento social por causa do coronavírus já passa de três meses e o momento, que já não é fácil, pode ser ainda mais difícil para famílias com crianças ou adolescentes no espectro autista. Mesmo mais habituados, após todo esse período juntos, com a nova rotina, ainda existem desafios e dificuldades pelo caminho.
A Covid-19
Sabrina Muggiati é idealizadora do Projeto Eu Digo X, do Instituto Lico Kaesemodel e mãe do Jorge, de 16 anos, adolescente com Síndrome do X Frágil e autismo, e precisou enfrentar não só a dificuldade do isolamento, mas uma quarentena de separação causada pela Covid-19. Diagnosticada no início de maio, foram 38 dias de separação do filho, mantendo o contato pelos meios digitais apenas.
“Eu e minha irmã pegamos juntas. Passamos um fim de semana na fazenda, com meu cunhado. Na segunda-feira, minha irmã sentiu uma dor no corpo. E na terça-feira ela fez o exame”, explica Sabrina. Assim que soube do resultado positivo de sua irmã, já se separou dos filhos, Jorge e Giorgia, deixando eles com o pai, seu ex-marido.
No dia seguinte, foi sua vez de passar pelo teste e ter o positivo. Sabrina então se limitou a ficar na casa de Rafaela, sua irmã. As pessoas próximas às duas também fizeram testes, e todos deram negativos. O período que começou com poucos sintomas, no entanto, foi evoluindo. “Uma semana depois comecei a ter sintomas mais fortes. Estava muito mal, quase fui internada. Muita fraqueza, cansaço e até mudanças na parte intestinal. A perda do paladar e do olfato foi um dos primeiros efeitos. Apetite também, fiquei sem vontade de comer”, relata.
O que era um esforço maior para o período de pandemia, passou a ser doloroso pela separação de mãe e filho. “Falava com ele, no começo até foi indo, depois ficava difícil para ele. Jorge ficou bastante ansioso, pegava fotografia de madrugada e pedia para ‘ligar para a mamãe’. Sentiu muita falta, mas não tinha como ver”, conta. E para a mãe também não era fácil. Além dos problemas físicos, a parte emocional foi abalada. “Não teve um dia que não chorei, chorava todos os dias”. Sabrina ainda auxiliava nas atividades de Jorge, ou a escolher uma roupa, por exemplo, além de ficar junto nas refeições, mas tudo por telefone e redes sociais.
Eles se faziam três ligações por dia, sendo por vídeo ou por telefone. “A ligação que eu tenho com ele é muito grande, ele sabe quando não estou muito bem. Ele perguntava muitas vezes se eu estava melhor. Eu respondia que melhorava, então ele perguntava se eu ia para casa”, relembra Sabrina. A cada 15 dias, ela fazia testes para saber se não havia mais chance de repassar o vírus. Mesmo quando recebeu a resposta de que já não transmitiria para outras pessoas, precisou esperar mais uma semana.
E depois da ansiedade e nervosismo, o reencontro aconteceu. Com 38 dias contados, por mãe e filho, ambos voltaram a se ver pessoalmente. “No dia anterior, ele perguntava, ‘mamãe vai aparecer?’ Eu disse que ia aparecer”, fala Sabrina. O contato com Jorge é um pouco mais difícil, mas ele não se segurou ao ver a mãe após o período e a abraçou por um longo tempo. “Até hoje ele ainda chama muito a mamãe, vem e abraça, ele não conseguiu administrar as saudades”, finaliza.
A Independência
A dentista Tatiana Alves Bley enfrenta o isolamento ao lado do marido e seus dois filhos. Ubirajara, de 11 anos, e Felipe, de 7, que estão dentro do espectro autista. “Estamos tentando. Os dois têm atendimento completamente diferentes, porque um é leve e o outro é severo”, relata Bley.
Felipe, o mais novo, é quem apresenta maior dificuldade. 90% das atividades dele estão sendo feitas em casa, da escola até a ajuda terapêutica. Além disso, ele sente falta dos passeios, das atividades fora de casa, como praia e natação. Outra dificuldade são as aulas online. Tatiana acredita que com as aulas presenciais, o foco é melhor. Na quarentena, ela fica com ambos durante as aulas à distância.
A situação também exige bastante dos pais das crianças, mesmo estando em casa. “Acho que pra mim o mais difícil é tentar administrar meu tempo. Faço praticamente 100% o atendimento deles, principalmente do menor. Eu acordo e fico o dia inteiro nessa função de organizar a vida deles. Vou dormir à meia-noite para acordar e continuar fazendo isso”, relata.
No entanto, coisas boas podem surgir das dificuldades enfrentadas. Para Tatiana, a nova rotina tem mostrado que os pais de crianças com autismo devem participar mais das atividades, não deixando somente nas mãos dos profissionais especializados, mas auxiliar eles também. “As mães são muito dependentes do atendimento feito pelos profissionais e a grande maioria dos profissionais não é 100% capacitado. Eles meio que alimentam a dependência dos pais, principalmente na questão financeira, e o serviço de qualidade em Curitiba é pouco. São poucos profissionais que entendem mesmo de autismo”, desabafa a dentista.
Tatiana participou de um treinamento parental, contando com 11 sessões para que compreendesse melhor como poderia auxiliar seus filhos e os profissionais que os atendem. “Eu tive a oportunidade de ter tido esse treinamento parental, foi positivo ao me empoderar e ficar mais independente desse ramo de profissionais”, relata.
Ela ainda conta o que acredita ser necessário para que o quadro melhore para todos. “Enquanto os pais não puderem estar juntos no atendimento, não vai funcionar. E clínicas que não instruírem os pais, são clínicas que não têm um bom futuro. Os pais são aliados, e não concorrência dos terapeutas”, finaliza.
A reinvenção
Formada em Educação Física, Daniela Kozelinski mudou sua profissão após a sua filha Laura, hoje com 10 anos, receber o diagnóstico do autismo. Passou a ser consultora de vendas, assim podendo controlar melhor seu tempo em casa, dividindo o cuidado com a Laura, e as visitas aos clientes no horário da escola.
Porém, com o afastamento social, novas medidas foram precisas. Sem mais visitas, a adaptação ao meio virtual veio com tudo. “Não saio mais, minhas vendas estão todas online. Como consultora, eu ia nas casas. Agora essa parte não tem mais, é tudo pela internet. Diminuíram bastante as vendas, continua devagar, mas mudou muito”, explica Daniela.
A adaptação da Laura às novas rotinas foram com bastante base na conversa, e algumas atividades da escola também ajudaram ela a entender melhor o que está se passando. “Inclusive a escola fez um trabalho em uma aula de artes, em que ela tinha que elaborar um cartaz. A gente até fez fotos com ela, lavando mão, álcool gel e usando máscara, para ficar bem visual para ela entender bem”, esclarece a consultora. As aulas à distância tiveram um melhor rendimento quando foram gravadas, permitindo assim que Daniela acompanhasse a Laura.
Segundo a consultora, boa parte da força para entender esse momento vem de uma espécie de “grupo de apoio” composto de mães de crianças com autismo. “Temos um grupo muito fortalecido de mães. [É importante] Saber que somos capazes, que vamos passar por tudo isso juntos. E saber da capacidade de dar apoio para outras mulheres. Pelas experiências que a gente tem, adquirimos novas e passamos outras também”, finaliza.