Receber o diagnóstico de diabete tipo 1, algo que comumente ocorre na infância ou adolescência, cai como uma bomba na família, que atinge primeiramente os pais. Muitas das vezes, após o diagnóstico é necessário um processo que vai da elaboração até a aceitação. “E para cada um esse processo será de uma forma e levará um tempo diferente”, diz a psicóloga clínica Raquel Pilotto, também diabética tipo 1 e que trabalha no Centro de Diabetes do Rio de Janeiro e é voluntária na Associação dos Diabéticos da Lagoa.
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Ela explica que em qualquer fase da vida é difícil aceitar o diagnóstico de uma doença crônica como o diabete, porque o adoecimento do corpo remete à nossa finitude, à morte. “E por mais que saibamos que vamos morrer, isso não é algo em que pensamos com frequência, até mesmo como um mecanismo de defesa”, diz ela. Confira a entrevista:
O que é mais difícil ser aceito por quem recebe o diagnóstico da diabete?
A maior reclamação dos pacientes é sobre a dificuldade em relação à alimentação, que influencia no controle glicêmico. A limitação das escolhas alimentares muitas vezes leva a que se rebelem dos cuidados com a doença. Porém, tendo diabete ou não, todos precisam cuidar do que comem e ninguém pode (ou deve) comer tudo o que quer, não sem consequências.
Ao receber o diagnóstico, há uma fase de luto?
Sim, tanto para a criança ou adolescente diagnosticada, quanto para seus pais. É um luto por um corpo perfeito, que funcionava normalmente, e agora não funciona mais tão bem. Com a diabete perde-se algo e precisa-se de algo externo. Ao buscar uma forma de lidar com isso, surgem a angústia, medo e frustração. Mas também se descobre que a vida continua possível de ser vivida, só que de outra forma, com algumas mudanças.
Qual é o comportamento usual de jovens com a doença?
Em geral, a fase da adolescência já é vista como um momento de rebeldia, quando o sujeito é convocado a muitas coisas: escolhas, mudanças, ressignificações, perdas de ideais. É um processo de elaboração de escolhas e perdas. Escolhas como: a posição sexuada, o objeto sexual, a profissão, os amigos e assim por diante. E perdas como: a dos pais da infância (idealizados) e do corpo infantil. Esse é um período marcado por grandes conflitos. Então, já é comum que essa fase seja vista e tratada como um momento difícil de lidar.
Tendo o diabete em jogo pode ser ainda mais difícil, pois pode ser encarado como fator complicador, gerando ainda mais conflitos. Em grande parte isso vai depender de como a família vai lidar com todas essas questões. A família deve ser um porto seguro em que ele se sinta acolhido e que tenha pessoas com quem ele possa contar.
Por mais que esse seja um período de separação da autoridade paterna, os adolescentes ainda precisam dos pais como referência. Portanto, os pais não devem separar-se dos filhos antes que os filhos se separem deles e tenham condições de suportar o desligamento de sua autoridade.
Há diferença na aceitação da doença entre meninos e meninas?
Não, apesar de o senso comum costumar dizer que meninas são mais cuidadosas e organizadas e meninos mais relapsos e bagunceiros. Mas cada um é único, e essa diferença não se aplica em relação aos cuidados com o diabete. Há meninos mais cuidadosos e meninas mais relapsas, e também o contrário se aplica.
Existe uma perda de sentido da vida quando você tem esse diagnóstico?
Pode ter tanto uma perda de sentido, quanto um aumento de sentido. A pessoa pode achar que por ter uma doença crônica e incurável precisa aproveitar mais a vida. Cada um lida de uma forma. Porém, quando ocorre uma perda de sentido, algo como um sintoma depressivo, é necessário buscar tratamento psíquico, pois isso pode ser um agravante no tratamento.
É comum que após todo esse processo isso gere superproteção pelos pais?
Sim, o diagnóstico pode gerar culpa e superproteção. As relações humanas comportam amor e ódio e essa complexidade de sentimentos pode esconder tanto um medo, quanto um desejo. É difícil cuidar de um doente e os pais podem acabar tendo, após o diagnóstico e, ao mesmo tempo, um grande medo de perder seu filho, mas também o desejo inconsciente de perdê-lo.
Quais costumam ser as angústias mais típicas em relação à doença para os pais?
Acredito que a culpa em relação à doença dos filhos. Isso pode acontecer pelo sentimento ambivalente que os pais têm em relação aos filhos, o que é algo normal. Em algum momento pode ter havido um sentimento negativo (raiva, ressentimento) e eles podem acreditar, de forma inconsciente, de que a doença é resultado desse desejo inconsciente de morte e assim acabarem tanto se culpando quanto superprotegendo essa criança.
E as angústias mais típicas de quem é diagnosticado jovem?
Creio que o medo de desenvolver complicações, já que esse é um tema muito falado. Desde o diagnóstico deveria se falar mais nos benefícios de um bom cuidado do que nos malefícios de um mal cuidado, que não irá ocorrer se a pessoa fizer um bom tratamento e se cuidar. E que isso está nas mãos dela (ou dos pais, quando ainda é uma criança pequena).
É diferente você ser diagnosticado jovem como em boa parte do tipo 1 e quando, mais velho, você tem o diagnóstico da tipo 2?
Sim, tanto as doenças quanto os tratamentos são bem diferentes e em momentos diferentes. O diagnosticado do Dm1 costuma ser na infância, adolescência ou início da fase adulta. Nessa fase ninguém espera uma doença. Dependendo de como o diabete aparece e como as pessoas ao redor lidam com ele tudo isso irá refletir durante toda a vida do sujeito.
Já em relação ao diabetes tipo 2, que aparece mais tardiamente e depende em grande parte do estilo de vida do indivíduo, as pessoas podem acabar vendo como algo “comum” o adoecimento “natural” que a idade traz. Mas na verdade esse quadro pode ser evitado com prevenção. Enquanto o Dm1 não, já que é uma doença autoimune.
A tipo 1 também envolve procedimentos mais invasivos. Como isso afeta emocionalmente o diagnosticado?
Por conta disso as pessoas acabam percebendo o tipo 1 como uma doença mais grave. Mas na verdade grave é qualquer tipo de diabete quando não cuidado. O diabete quando bem cuidado não irá causar complicações graves à longo prazo. E o risco de complicações leves e médias também será muito baixo.
Como os grupos de conversa de diabéticos podem ajudar na aceitação?
Grupos tendem a auxiliar muito no tratamento diabetes. Tanto grupos terapêuticos quanto grupos de encontros em geral podem ser de grande ajuda no cuidado com a doença. Quando fazem parte desses grupos, as pessoas percebem que não são as únicas a passar pelos problemas que o diabetes traz. Elas não estão sozinhas e existem outras pessoas que passam por situações similares e lidam de diversas formas com essas questões. Cada local tem um centro ou associação de diabetes e esses lugares costumam fazer esse tipo de grupo.
Como a estrutura da personalidade pode ser debilitada na adolescência de um diabético?
O sujeito acometido pode acabar sendo visto como “coitadinho” ou “frágil” por ter diabetes. Não que ele seja, mas pode ser visto dessa forma e usar disso como benefício de forma inconsciente. A questão é em que lugar esse sujeito irá se colocar (ou será colocado pela família) a partir do surgimento do diabetes. Como a família vai ver e lidar com isso? Como ele mesmo vai encarar a doença? Tudo isso é muito individual, subjetivo e precisará ser visto no caso à caso. Em geral, quando a doença surge na infância e adolescência a forma com que os pais lidam com o diabetes irá refletir diretamente em como o filho vai encarar a doença.
Qual a sua dica para quem foi diagnosticado ou seus pais?
É sim possível viver bem com o diabetes. Não sem esforço, dedicação e cuidado. Mas, essa é a vida real, é assim para todos. Todos têm dificuldades e precisam lidar com elas. As dificuldades não são exclusividade de quem tem diabetes, são para todos os seres humanos, todos que estão vivos e querem continuar vivendo bem precisam lutar diariamente para ter uma vida boa. E a vida vale a pena de ser vivida, mesmo diante das dificuldades que temos pela frente, vale a pena escolher viver!