Quando Manaus, no Amazonas, registrava três meses de queda acentuada nos casos de Covid-19 mesmo com as escolas e o comércio reabertos, em agosto de 2020, parte dos especialistas brasileiros levantou a hipótese de que o limiar da imunidade coletiva ao vírus SARS-CoV-2 teria sido alcançado na região – ainda que os inquéritos sorológicos apontassem uma soroprevalência inferior a 30% em todo o norte do país. As informações são da Agência Fapesp.
A hipótese ganhou força no mês seguinte, em setembro, quando pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradores divulgaram um artigo, feito com amostras de bancos de sangue, que estimava por meio de modelagem matemática que a soroprevalência na capital amazonense seria de 66%, ou seja, estaria perto do limiar calculado no início da pandemia pela fórmula clássica usada na epidemiologia.
Em dezembro, quando saiu a versão final do estudo coordenado pela professora Ester Sabino na revista Science, a estimativa era de que 76% dos manauaras já tinham imunidade contra o novo coronavírus.
Então como explicar a segunda onda de casos que levou a um novo colapso do sistema de saúde e obrigou o prefeito a decretar, no dia 5 de janeiro, estado de emergência pelos próximos seis meses?
Na avaliação de Sabino, como o vírus continua circulando em todo o país, o número de casos voltou a subir quando as pessoas retornaram às atividades normais e continuará crescendo até infectar algo em torno de 95% da população.
“Há um entendimento errado do conceito de imunidade de rebanho. Quando o limiar é alcançado não significa que a doença vai desaparecer e sim que os casos não vão crescer tão rapidamente como na primeira onda. Dificilmente haverá um pico como o de abril [de 2020] – a menos que as pessoas já tenham perdido a imunidade e os casos de reinfecção sejam muito mais comuns do que se imagina”, diz a pesquisadora.
O grande problema de Manaus, segundo Sabino, é que há poucos hospitais e os leitos de terapia intensiva se esgotam rapidamente. “A situação não deixa de ser preocupante. Ou se triplicam os leitos de UTI ou será necessário parar a cidade, pois hoje uma pessoa com apendicite pode morrer por falta de atendimento”, afirma.
Não são reinfecções
Com base em dados da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (AM), o infectologista Júlio Croda afirma que 99% dos novos casos notificados em Manaus são de pessoas que nunca antes tiveram a doença, ou seja, não são reinfecções.
“Nesta segunda onda, a maioria dos pacientes são das classes A e B, que conseguiram se manter em isolamento durante a primeira onda. A prova disso é que o sistema privado de saúde sofreu esgotamento antes do público – diferentemente do que ocorreu em abril de 2020. Após o relaxamento das medidas de controle, o vírus voltou a circular com maior intensidade e atingiu a parcela da população que estava mais suscetível”, afirma Croda, que é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Para o infectologista, a soroprevalência de 76% apontada no estudo divulgado na Science está superestimada. Ele acredita que mais de 50% dos manauaras ainda não desenvolveram imunidade contra o SARS-CoV-2.
“Importante ressaltar que o limiar da imunidade de rebanho não é um valor fixo. Ele é calculado com base na taxa de contágio [Rt, inicialmente estimado entre 2,5 e 3, ou seja, cada infectado transmite o SARS-CoV-2 para outras duas ou três pessoas], que depende tanto da genética do vírus quanto das medidas adotadas para conter a disseminação. Recentemente, surgiu uma variante mais transmissível no Reino Unido e isso impacta tanto o cálculo de Rt quanto do limiar da imunidade coletiva”, explica Croda.
Segundo o pesquisador, os cuidados adotados pela população independentemente do poder público – como uso de máscaras, higiene das mãos e distanciamento social – ajudam a reduzir a taxa de contágio, fazendo com que o limiar da imunidade coletiva também diminua.
“Provavelmente foi isso que causou a queda no número de casos observada em meados de 2020. Mas, no momento em que houve o afrouxamento das medidas de controle por parte da população e do poder público, o limiar retornou a patamares próximos de 70%”, avalia.
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), considera um “equívoco confiar demais nesse tipo de indicador”. “O grande problema é que para calcular o limiar da imunidade de rebanho você precisa saber o Rt e esse valor é uma estimativa – é um chute que pode ter um impacto muito grande. A humanidade nunca conseguiu conter uma doença cuja transmissão ocorre entre humanos por imunidade de rebanho. Sarampo e varíola, por exemplo, só foram controlados com vacina. No caso da Covid-19, falar em imunidade de rebanho ou em tratamento precoce só atrapalha os esforços de controle da doença, pois as medidas de distanciamento social deixam de fazer sentido para a população”, diz.
Lotufo também afirma ser difícil obter indicadores precisos de Manaus, o que dificulta uma análise precisa dos fatores que favoreceram a segunda onda de casos de COVID-19.
Além das hipóteses já mencionadas, como reinfecção ou a emergência de uma nova variante mais infecciosa, Lotufo menciona a possibilidade de parte das internações ser de pessoas do interior do estado do Amazonas que, devido à falta de leitos em seus municípios, buscam atendimento na capital – fenômeno conhecido como invasão de internações hospitalares.
Projeção versus realidade
Entre os especialistas que acreditavam que Manaus havia atingido o limiar da imunidade de rebanho em meados de 2020 está a biomatemática portuguesa Gabriela Gomes, atualmente professora da University of Strathclyde (Escócia), que desenvolveu um modelo que leva em conta o fato de que os indivíduos de uma população têm diferentes graus de suscetibilidade e de exposição ao vírus. Integram o grupo de Gabriela os pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP Marcelo Urbano Ferreira e Rodrigo Corder.
“Quando comparamos as projeções de hospitalização por Covid-19 em Manaus feitas em outubro com o modelo heterogêneo com a do modelo homogêneo usado pelos pesquisadores do Imperial College London [Reino Unido], notamos que a realidade atual está no meio do caminho entre as duas projeções. A curva não é nem tão alta como a prevista pelos britânicos e nem tão baixa quanto nós estimamos. Creio que isso se deve ao fato de que todos os modelos têm limitações”, diz Ferreira.
Como se trata de uma doença nova, cuja dinâmica começa a ser desvendada, algumas variáveis importantes para que os cálculos sejam feitos ainda são imprecisas. “Temos trabalhado com dados de anticorpos para estimar o número de casos e, independentemente do ajuste feito, isso é problemático. Sabemos hoje que a quantidade de anticorpos tende a cair com o tempo. Além disso, indivíduos infectados continuam correndo risco de reinfecção, algo que não se sabia no início. Outra limitação está relacionada ao modo como inserimos nos modelos os parâmetros que representam o relaxamento das medidas de controle. São Paulo, por exemplo, mudou da fase vermelha para a amarela entre Natal e o ano novo. Também não sabemos ao certo até que ponto as pessoas retomaram a vida normal ou seguem respeitando as orientações de distanciamento. Tudo isso dificulta o trabalho de modelagem – sem falar do surgimento de novas variantes do vírus ainda mais transmissíveis”, elenca Ferreira.
O grupo tem estudado no momento como as medidas de restrição de mobilidade podem afetar o coeficiente de risco. Isso porque o trabalho de Gomes parte da premissa que as pessoas têm diferentes graus de suscetibilidade e exposição ao vírus tanto por fatores genéticos e imunológicos quanto pelo estilo de vida. “Mas, quando todos passam a ficar confinados em casa, essa diferença entre os indivíduos diminui”, explica Ferreira.
Ponto de virada
Divulgada em setembro de 2020, a quarta e mais recente fase do inquérito sorológico Epicovid, conduzido em 133 cidades brasileiras por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), indicava que a epidemia estava em desaceleração na maior parte do país.
Segundo o epidemiologista Pedro Hallal, coordenador da iniciativa, a tendência começou a mudar na reta final das eleições municipais. O tamanho do impacto será medido ainda em janeiro, quando ocorrerá a quinta etapa de coletas do inquérito Epicovid.
“As duas semanas que precederam o segundo turno foram decisivas. Depois vieram as festas de fim de ano e as férias de verão. Os casos cresceram consistentemente pelo menos até meados de dezembro, segundo as estatísticas oficiais, mas ainda não voltamos ao patamar de quando a média móvel de óbitos era mais de mil por dia. Se a tendência de crescimento se manterá é difícil dizer. A história da pandemia é construída diariamente. Tudo depende de como a população vai se comportar”, diz Hallal.
O pesquisador lamenta a falta de uma política nacional efetiva de combate da doença. “Sabemos o que fazer para a curva cair rapidamente: testagem em larga escala e rastreamento de contatos. Isso nunca foi implementado no país. Se um indivíduo é diagnosticado hoje, ninguém investiga com quais pessoas ele teve contato e isso deveria ser obrigatório. Outros países adotam o lockdown quando os casos começam a subir muito e o vírus rapidamente para de circular e tudo pode reabrir. Aqui no Brasil fazemos um isolamento meia-boca, que é ruim para a saúde pública e para a economia, que também fica meia-boca”.
Para Hallal, a política mais importante a ser planejada em 2021 é a da vacinação, que ele considera a única forma de alcançar a imunidade de rebanho sem que ocorra uma tragédia em termos de mortalidade. Lotufo concorda e diz estar otimista.
“As vacinas do Instituto Butantan [desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac] e do laboratório AstraZeneca [desenvolvida pela Universidade de Oxford, Reino Unido] têm boa eficácia, são de fácil manuseio e serão produzidas aqui no país. Se tudo correr bem, poderemos rapidamente vacinar a população”, opina Lotufo.
Croda acredita que em um primeiro momento não haverá doses suficientes para que a imunidade de rebanho seja alcançada em âmbito nacional. Para isso seria necessário vacinar 80% da população. “Contudo, segundo a Organização Mundial de Saúde, é possível reduzir significativamente as internações e os óbitos vacinando os 20% de maior risco. Isso já será um grande avanço”, afirma.