A relação da Covid-19 com a diabete, até o momento, parecia ser uma via de mão única. Quem tinha a doença crônica estava em maior risco para complicações da infecção pelo novo coronavírus. Agora, pesquisadores da área desconfiam que a estrada seja mais intrincada do que parece.
Em uma carta enviada à revista científica New England Journal of Medicine (NEJM), publicada no dia 12 de junho, 16 pesquisadores de diversos países alertam para o aumento no número de pacientes que, diagnosticados com a Covid-19, vieram a desenvolver sintomas de diabete. Esse foi um fato verificado mesmo entre pessoas sem predisposição para a doença crônica.
A fim de encontrar outros casos pelo mundo, e obter mais detalhes desse fenômeno (como, por exemplo, se as pessoas mantêm a diabete por muito tempo; se a doença se dissipa com o fim da infecção ou, ainda, se trata-se da doença de tipo 1, 2, ou uma nova versão), os pesquisadores lançaram o projeto CoviDiab de registro global de pacientes.
"Dado ao curto histórico de contato humano com a COVID-19, esse registro nos ajudará de forma rápida a entender como a diabete relacionada à COVID-19 se desenvolve, sua história natural e o melhor tratamento. Estudar a diabete relacionado à Covid-19 pode, inclusive, revelar novos mecanismos da doença", argumentam os pesquisadores no site do projeto.
Como o coronavírus pode desencadear diabete?
A ação exata do novo coronavírus no desencadeamento da diabete ainda não é totalmente compreendida. Os pesquisadores internacionais especulam, porém, que o Sars-Cov-2 seja capaz de interferir no metabolismo da glicose.
Para entrar na célula humana e se replicar, o novo coronavírus se conecta a um receptor enzimático, conhecido por ACE2 ou enzima conversora de angiotensina 2. Essa enzima é expressa em vários órgãos e tecidos, incluindo a célula-beta pancreática. O pâncreas é o órgão que produz o hormônio insulina, responsável pela metabolização do açúcar no sangue, que será transformado em energia.
Entre pacientes com a diabete tipo 1, a produção da insulina é prejudicada e, por esse motivo, há a necessidade de aplicação do hormônio. No caso do tipo 2 da doença, o organismo desenvolve uma resistência à insulina, de forma que o pâncreas reduz a produção.
"Assim, seria plausível que o SARS-CoV-2 possa causar alterações pleiotrópicas no metabolismo da glicose, que poderiam complicar a fisiopatologia da diabetes pré-existente ou levar a um novo mecanismo da doença", destacam os pesquisadores.
Sem predisposição
Um detalhe que chama atenção é que o desenvolvimento da diabete foi percebido mesmo entre pessoas que não tinham predisposição para a doença, de acordo com a médica endocrinologista Maria Augusta Karas Zella, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia - Regional Paraná.
"Temos visto que pacientes que não tinham histórico de diabete, que não tinham marcadores da doença, como a hemoglobina glicada alterada, estão evoluindo com um quadro de diabete, de alteração da glicemia em jejum, e um diabete que evolui com cetose, que é mais comum no tipo 1", explica a médica, que também é professora do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, em Curitiba.
Ainda não se sabe, porém, se esse diabete será mantido, mesmo após o desenrolar da infecção, ou se a pessoa volta a um estado de normalidade. "Isso é uma incógnita, e esse registro mundial vai ajudar nessa questão. O que sabemos é que foram pacientes que evoluíram com pneumonia e, durante esse quadro, fizeram cetose", reforça a médica.
Cetose ou cetoacidose, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Diabetes, é o nome dado a uma emergência médica, que acontece quando os níveis de açúcar e de cetonas no sangue estão muito altos. Cetonas são substâncias que se formam quando o organismo, na tentativa de encontrar energia para as células, usa estoques de gordura do corpo.
Vírus e diabete
Caso se confirme essa relação, o Sars-Cov-2 não seria o primeiro vírus da família dos coronavírus a desencadear diabete entre os pacientes.
"No outro coronavírus, o Sars 1, havia sido descrito um aumento na incidência de glicemia em jejum. Não é a primeira vez que um vírus dessa família faz algo assim", explica Rosângela Réa, médica endocrinologista do serviço de Endocrinologia e Metabologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná (SEMPR/HC/UFPR).
De outros agentes patológicos com a mesma ação, Réa lembra o vírus coxsackie b, capaz de infectar o coração, a pleura (película que recobre o pulmão), pâncreas e fígado.
"Já existem precedentes para a etiologia viral na diabete com outros vírus, como a rubéola congênita. Cerca de 20% dos casos desenvolvem diabete. O vírus coxsackie, o citomegalovírus, o adenovírus, todos estão relacionados a etiologia da diabete tipo 1", completa Maria Augusta Karas Zella, médica endocrinologista.
Dúvidas pendentes
Pessoas com o diagnóstico da Covid-19 e que desenvolverem diabetes poderão voltar a um quadro sem a doença? Talvez sim, mas essa é uma dúvida sem respostas no momento.
"Agora, a batalha é para que realmente se estude bem esse diabete, se avalie a hemoglobina glicada, para ver se essas pessoas já não tinham uma hiperglicemia antes, e principalmente acompanhar os casos. Se essas pessoas voltarem a uma situação de normalidade, elas terão mais chances de diabete no futuro? E que tipo de normalidade será? Será que foi uma ação só? Ou será que a utilização dos receptores que causa esse dismetabolismo realmente precipita uma diabete de maneira definitiva?", questiona Rosângela.