Há quem diga que as novas gerações, a Y (ou os millennials, nascidos entre 1980 e 1990) e a Z (1990 a 2000), estejam se afastando de um dos mais mundanos dos vícios: a bebida alcoólica.
O crescimento de 746% na procura pelo termo "sober living", ou viver de forma sóbria, na rede social Pinterest nos primeiros meses de 2019 apoia essa teoria. O surgimento de bares que vendem bebidas zero álcool ajuda a corroborá-la. São Paulo já tem. Nova York, Londres e Dublin também.
No Reino Unido, inclusive, abandonar o consumo do álcool durante todo o mês de janeiro virou mania. Criada em 2013, a campanha Dry January, ou janeiro seco, em tradução livre, começou com a decisão de uma inglesa, Emily Robinson, de largar a bebida durante 30 dias para focar em uma maratona que correria dali um mês.
O feito chamou atenção de conhecidos e quatro mil pessoas decidiram embarcar na mesma ideia no primeiro ano do desafio. Em 2018, foram quatro milhões de indivíduos que abandonaram o consumo alcoólico durante o primeiro mês do ano.
Até mesmo dados mundiais mostram uma tendência de queda na adoração à bebida. Em pouco mais de uma década, a Organização Mundial da Saúde (OMS) viu o consumo exagerado entre jovens de 20 a 24 anos passar de 25,8% em 2000 para 21,8% em 2016.
Esse uso em excesso é chamado por especialistas de Binge drinking, ou Beber Pesado Episódico (BPE) e se refere ao consumo de cinco doses de bebida, em duas horas, entre os homens, e quatro doses entre as mulheres, no mesmo período.
Eu bebo, sim
Apesar de todos os exemplos acima, beber ainda não é algo tão fora de moda – e os jovens são, sim, adeptos desse modismo.
De acordo com a OMS, em relatório divulgado pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), 26,5% dos adolescentes, no mundo, entre 15 e 19 anos afirmaram ter bebido no último ano, o que representa um total de 155 milhões de pessoas.
A Europa foi a região com as taxas de consumo mais altas nessa faixa etária, de 43,8%. Na sequência estão as Américas, com 38,2%.
Para solucionar esse problema, não basta apontar para os culpados, conforme explica Isabela Collares, educomunicadora e idealizadora do projeto Antes da Saideira. Ainda vivemos em uma cultura "álcoolgênica" ou "álcoolcêntrica", termos cunhados pela autora e jornalista Ann Dowsett Johnston, em que não parece ser possível imaginar qualquer comemoração ou momento de relaxamento que não traga uma bebida.
"Esse álcoolcentrismo é diretamente relacionado ao hedonismo, ao prazer pelo prazer. A ideia de que a vida é agora, como a propaganda do cartão reforça para a gente. A pessoa perde a perspectiva de um sentido maior, de um planejamento de vida, e sucumbe aos prazeres passageiros", explica Collares, cujo projeto visa conscientizar o consumo do álcool entre os jovens a partir de debates com estudantes de 15 a 20 anos.
Existe idade mais fácil para cair nessa de que "a vida é agora" do que os adolescentes e os jovens adultos? Nem mesmo a sensação de liberdade que eles frequentemente associam ao álcool é real. Isabela lembra que, quando se trata do álcool, a ideia de "sou livre para escolher" é muito relativa.
"A pessoa só é livre quando a balança entre as políticas de esclarecimento dos danos do álcool e a publicidade do mesmo está equilibrada. E ela não está. O que vemos no projeto, por mais paradoxal que seja, é que o álcool em si não é o problema, mas a falta de saúde emocional", explica.
Para que eu bebo?
Se parece fácil responder por que se bebe (para acompanhar os amigos, se divertir, relaxar), a facilidade se perde quando a questão se transforma em: para que, qual é a necessidade?
"O diagnóstico, o porquê da necessidade de se entorpecer, eles [os jovens] têm essa resposta. Mas falta autoconhecimento. Quando fazemos as rodadas de palestras, eu tento ser uma facilitadora, mediando o encontro durante 15 a 20 minutos. Depois eles debatem de por que há essa necessidade em se entorpecer. Eu não fico na expectativa da resposta pronta, se é certo ou errado, mas em ver eles questionando e ouvindo a opinião dos amigos e deles mesmos", explica a educomunicadora.
Dos argumentos que ela mais escuta, estão "consumir o álcool para se sentir mais confiante" ou "tomar para diminuir a timidez". Tais frases podem ser traduzidas, conforme Isabela, como uma falta de conhecer a si próprio e precisar de muletas para conseguir se sentir melhor.
"A minha sensação é que há um movimento bacana de abertura ao diálogo [para a saúde mental]. Antes era muito velado. O pessoal pode até enfiar o pé na jaca, mas as consequências estão surgindo e os debates sobre isso aparecem mais", reforça.
Isabela conta que foi convidada por uma cervejaria reconhecida no país para trabalhar em uma ação que visava a redução no consumo da bebida. "Eu achei bem estranho eles me chamarem para um projeto que ia na contramão do produto deles. Mas o que eles viam era que uma das marcas deles era consumida de forma tão exagerada pelo público adolescente e juvenil que o público-alvo deles, que é a partir dos 30 anos, não chegava. O alcoolismo ou a morte prematura pegava esse público antes", conta.
Família que bebe junto
Na tentativa de impedir que o adolescente beba fora de casa, sem saber o que está consumindo, em qual quantidade e se vai entrar em um carro com alguém embriagado depois, os pais têm adotado uma postura de: pode beber dentro de casa, conosco.
"Hoje está muito em voga essa coisa de 'prefiro que eles bebam em casa do que fora', com receio de que dirijam embriagados. Mas os pais também consomem e na cabeça do jovem isso se torna a maior propaganda para o uso, o consentimento. Não há culpados, mas tem um apelo cultural muito forte. Com a crença do álcool dentro de casa, perde-se o senso de 'por que eu estou fazendo isso?'", completa Isabela.
Para Arthur Guerra, médico psiquiatra e presidente do CISA, o papel da família é essencial no combate ao consumo precoce.
"Entendo quando o pai diz preferir que o filho beba em casa, mas muitas vezes isso é uma postura romântica. Ele acha que está controlando o quanto o jovem bebe e o que, mas nem sempre dão o exemplo", afirma o também professor da Faculdade de Medicina da USP e do ABC, em São Paulo.
Quando o pai ou a mãe demonstram consumos mais adequados da bebida – largando o copo e mesmo avisando os demais que parou de beber; avisando que bebeu o suficiente e parou ou até mesmo recusando o uso em eventos sociais – servem de exemplo aos filhos. Pode não parecer, mas os adolescentes reagem aos exemplos dos pais tal qual as crianças na primeira infância.
"Hoje está muito em voga essa coisa de 'prefiro que eles bebam em casa do que fora', com receio de que dirijam embriagados. Mas os pais também consomem e na cabeça do jovem isso se torna a maior propaganda para o uso, o consentimento." — Isabela Collares, idealizadora do projeto Antes da Saideira, contra a banalização do consumo de álcool entre os jovens.
Como chamar atenção do jovem para a bebida?
Entender o que está por trás do consumo exagerado da bebida alcoólica é o primeiro passo do médico psiquiatra Arthur Guerra quando está diante de um novo paciente.
"Eu tenho que fazer o diagnóstico para entender por que ele bebe de forma exagerada. Será que é pelas amizades? Ou só pelo consumo do álcool? Pode ser sintoma de uma doença por trás, como depressão, ansiedade. Até mesmo insônia, e o álcool é usado como se fosse um 'remédio'. Como cada caso é um caso, não há uma abordagem que sirva a todos", explica o especialista.
Em geral, segundo Guerra, a pessoa não percebe quais são esses outros motivos que podem reforçar o consumo das bebidas. O motivo para isso é que a maioria das pessoas acha que tem o controle.
"Tem uma dificuldade em reconhecer. Em geral, existe uma negação. E eu falo que os amigos, a família fala que ele tem, mas ele diz que bebe socialmente, moderadamente. A negação faz parte do quadro clínico, por isso é difícil. O momento mágico do tratamento é quando depois de algumas consultas a pessoa admite que tem um problema e que quer se tratar. Enquanto ela não quiser fica muito complicado", relata o psiquiatra.
"Eu só conseguia ser um observador da vida alheia"
Depois de três anos do projeto Antes da Saideira, Isabela Collares escreveu um livro, que será lançado no primeiro semestre de 2020. Na obra, a autora traz os relatos de jovens que passaram pelo consumo moderado, mas também exagerado, da bebida alcoólica e como impactou na vida de cada um deles. Confira abaixo quatro relatos, cedidos pela autora, de participantes anônimos:
"Um dia, arrumando minhas coisas para ir à faculdade, peguei meu pai falando sobre o cheiro de álcool que sentiu no meu quarto. Minha mãe imediatamente refutou dizendo que nessa fase de universidade é normal o jovem beber e, por isso, não haveria motivo para tais preocupações. Depois de algumas leves batidas de carro no portão de casa e um jeito irritado de me comportar nas reuniões de família, acho que minha mãe passou a desconfiar que ela estava mesmo é 'tapando o sol com a peneira'. Assumir que o filho mais velho, o boa praça da família, tinha problemas em relação a forma de beber, não deve ter sido tarefa muito fácil."
"A princípio pode soar estranho, mas hoje agradeço por ter passado por essa crise toda em relação ao consumo de álcool. Isso porque eu tive a chance de ver, ainda jovem, a enorme lista de prejuízos que os goles podem trazer. Lista essa por vezes camuflada pelos sedutores anúncios publicitários. É provável que muita gente só se dê conta de que o álcool é mesmo uma substância perigosa depois de anos e anos de consumo."
"Durante muito tempo fui adepto a filosofia de boteco. Hoje, curtição para mim é outra coisa. Curto aproveitar melhor o meu tempo contribuindo para a vida em sociedade. Poder estudar numa universidade não é pouca coisa. E essa é uma percepção que só consegui ter depois de ter virado as costas para a boemia."
"Uma das mudanças de comportamento mais importantes que eu vejo em escolher tampar a garrafa foi querer participar da vida de novo. Sim, porque quando bebia não tinha força nem fôlego para atuar. Eu só conseguia representar o papel de observador. Observador da realidade alheia."