Um estudo sobre os contágios do novo coronavírus na cidade italiana de Vo’ Euganeo, onde a maioria da população foi testada, ajuda a esclarecer o papel dos pacientes assintomáticos na transmissão da doença. A pesquisa também indica que a testagem em massa e o isolamento social permitiram que o vírus fosse contido em poucas semanas no local.
O pequeno município de Vo’ Euganeo, na região do Vêneto, chamou atenção no noticiário internacional no início do ano por ter registrado a primeira morte por Covid-19 na Itália, em 21 de fevereiro. Em resposta, as autoridades locais decretaram, no mesmo dia, um lockdown de 14 dias em toda a cidade. Quase todos os estabelecimentos foram fechados e os moradores foram obrigados a ficar em casa. Nesse período, pesquisadores da Universidade de Pádua (Itália) e do Imperial College London (Reino Unido) fizeram testes de Covid-19 na maioria dos 3.200 moradores da cidade, em duas ocasiões.
Os primeiros exames, feitos assim que o lockdown começou, detectaram o SARS-CoV-2 em 2,6% da população (73 pessoas). Depois de duas semanas, ao fim da quarentena obrigatória, apenas 29 pessoas (1,2% da população) tiveram resultado positivo para o vírus causador da Covid-19. Nas duas ocasiões, cerca de 42,5% dos infectados não apresentavam sintomas no momento do teste e também não tiveram sintomas depois.
Os pacientes sem sintomas tinham carga viral (a quantidade de vírus que uma pessoa tem em seu corpo) similar à dos sintomáticos, descobriu a equipe. Esse dado sugere que os casos assintomáticos também têm um papel na disseminação da doença.
Os resultados do estudo, publicados na revista científica Nature na terça-feira (30), mostram que a abordagem de testar e rastrear os contatos de quem teve resultado positivo pode ter um grande impacto sobre o controle dos contágios.
Um dos coordenadores da pesquisa, Andrea Crisanti, pesquisador do Departamento de Medicina Molecular da Universidade de Pádua e do Departamento de Ciências da Vida do Imperial College, disse que a pesquisa "mostra que testar todos os cidadãos, com ou sem sintomas, oferece uma maneira de gerenciar a propagação da doença e impedir que surtos fiquem fora de controle". Crisanti afirmou à imprensa, que "apesar da transmissão ‘silenciosa’ e generalizada, a doença pode ser controlada".
O experimento orientou as políticas adotadas na região italiana do Vêneto, onde testes estão disponíveis para todos que tiveram contato com pacientes sintomáticos de Covid-19. Segundo os autores do estudo, essa abordagem de testar e rastrear teve "um impacto tremendo no curso da epidemia no Vêneto", que não foi tão afetada quanto outras regiões da Itália. O país europeu chegou a ser o epicentro global da pandemia, que teve o maior impacto na cidade de Bergamo, na região da Lombardia. Quase a metade das 34,8 mil mortes por Covid-19 registradas na Itália ocorreu na Lombardia.
Rafael Polidoro, pesquisador em Imunologia da Universidade de Indiana (EUA), concorda que esse estudo contribui para a compreensão da importância do isolamento social para controlar a pandemia. Para ele, os resultados mostram que o lockdown "teve um efeito gigantesco na transmissão", assim como a idade dos infectados.
As descobertas desse estudo são especialmente relevantes nesse momento em que várias regiões do mundo lidam com focos de infecção e com a ameaça de uma segunda onda do coronavírus, destacou Ilaria Dorigatti, pesquisadora da Faculdade de Medicina do Imperial College London e uma das coordenadoras da pesquisa. "O estudo de Vo’ demonstra que a identificação precoce de grupos de infecção e o pronto isolamento dos doentes sintomáticos e assintomáticos podem frear as transmissões e conter uma epidemia em sua fase inicial", disse.
A equipe também usou um modelo para estimar como seria a transmissão do novo coronavírus se a cidade não tivesse adotado o lockdown. "O modelo sugere que uma média de até 86,2% da população teria sido infectada na ausência de intervenções”, afirma o artigo, que estima, com o lockdown, uma taxa final de 4,9% da população de Vo’ infectada pelo SARS-CoV-2.
No entanto, o modelo usado na pequena cidade italiana não é fácil de ser replicado em cidades maiores – embora possa ser aplicado no âmbito de bairros e outros setores de grandes centros, diz Crisanti. Polidoro acredita que esse modelo tem mais chances de ter bons resultados em um grupo demográfico similar. "Certamente esse modelo não funciona em qualquer lugar, mas acredito que se tivermos faixa etária e mobilidade na cidade parecidas, ele vai funcionar", disse.
Para Polidoro, o maior desafio não é encontrar um modelo capaz de enfrentar o problema das transmissões do vírus, mas sim fazer com que os tomadores de decisões sejam convencidos pelos pesquisadores que elaboram esses planos. "Porque a pessoa que modela não está muito preocupada com as consequências econômicas, de emprego e sociais daquele modelo; ela está tentando barrar a transmissão de uma doença que tem impactos sociais e de emprego de toda forma", avaliou.
Casos misteriosos
A chegada do novo coronavírus em Vo’Euganeo intrigou os médicos. Os dois primeiros casos descobertos foram de dois vizinhos que nunca haviam estado na China, que na época era o epicentro da doença. Um deles, um aposentado de 78 anos, morreu após ter passado alguns dias internado em um hospital, se tornando a primeira vítima da doença no povoado e no país.
Logo após o diagnóstico desses dois primeiros casos sintomáticos de Covid-19, quando os pesquisadores fizeram a primeira rodada de testes, descobriu-se que uma parte significativa da população já tinha sido infectada, a maioria sem sintomas.
A região do Vêneto, que adotou a estratégia de testar as pessoas com sintomas de Covid-19 e todos os seus contatos, contabilizou até o momento por volta de 412 mortes da doença por milhão de habitantes, enquanto na Lombardia esse número chega a 1.667. As duas regiões do norte da Itália têm níveis comparáveis de educação, qualidade de vida, renda e faixa etária da população – fatores que influenciam a taxa de mortalidade pelo novo coronavírus.