Em um vídeo que circula na internet, um brasileiro que reside nos Estados Unidos diz que foi "curado" da Covid-19. Ele teria se inspirado no exemplo de um conhecido cubano, que teria se mantido imune ao novo coronavírus graças à prática da auto-hemoterapia. Ao realizar o mesmo tratamento, teria supostamente escapado da "morte certa".
A auto-hemoterapia consiste na técnica de retirar o próprio sangue de uma veia do braço e imediatamente reinjetá-lo em um músculo (como nos glúteos). Há várias décadas essa terapia é citada como uma suposta alternativa para curar diferentes males, que vão de problemas de pele a tumores malignos e, mais recentemente, contra a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Na verdade, trata-se de uma ação perigosa e proibida no Brasil.
"Auto-hemoterapia não funciona absolutamente nada", afirma Evanius Garcia Wiermann, oncologista clínico e chefe do serviço de Oncologia do Hospital VITA. "Não existe nada na literatura científica, nacional ou internacional, que corrobore essa prática", reforça João Samuel, médico responsável técnico pelo banco de sangue do Hospital Erasto Gaertner.
Pela ordem cronológica, já posicionaram-se contra a prática o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2007, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), em 2009, e a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH), em 2014.
Desde 2015, o CFM determina que médicos atuando no Brasil não podem recomendar ou realizar a técnica. Os profissionais de enfermagem já estavam proibidos desde 2009.
Recusa unânime
"Nenhuma diretriz nacional ou internacional sobre essas condições, oriunda das especialidades de Alergia, Imunologia e Pneumologia, incluem a auto-hemoterapia como recurso terapêutico", afirma o relatório do CFM, de autoria de Munir Massud, médico e atualmente professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O texto traz o argumento de que "não foi possível obter estudos confiáveis e com força de evidência científica elevada que indiquem ser a auto-hemoterapia propriamente dita um procedimento efetivo e seguro". O relatório do CFM relata ainda ter encontrado um documento datado de 1939 que recomenda a auto-hemoterapia para 37 diferentes doenças, incluindo alcoolismo, hipertensão arterial, epilepsia e úlcera.
"O que existe em abundância é uma propaganda na internet em linguagem inadequada à ciência, às vezes vulgar, desprovida de cultura científica, que pretende convencer pela dramaticidade de relatos de casos isolados sobre uma grande variedade de enfermidades e de estudos carentes de metodologia científica".
A Anvisa, por sua vez, reforçou as posições apresentadas pelo CFM e, em nota técnica atualizada em 2017, recomenda: "Caso o cidadão tenha conhecimento sobre a aplicação da auto-hemoterapia sendo realizada em algum estabelecimento de saúde, ou de interesse a saúde, ou até mesmo por profissionais liberais da área da saúde em atendimento 'home care', orientamos que denuncie ao Conselho de Classe referente ao profissional que está aplicando a auto-hemoterapia, bem como deve informar a vigilância sanitária local".
Riscos à saúde
Já a ABHH declarou, em nota de 2014 atualizada depois que a reportagem entrou em contato: "A auto-hemoterapia é adotada por leigos e é desaconselhada por, além de não ter nenhum benefício comprovado no campo da ciência, poder apresentar inúmeros riscos à saúde".
A entidade lembra: "A hemoterapia, prática terapêutica exercida por médicos hematologistas e hemoterapeutas que utiliza componentes do sangue, nada tem a ver com a chamada 'auto-hemoterapia', procedimento que consiste na aplicação intramuscular do sangue do próprio paciente".
Os defensores da auto-hemoterapia alegam que a medicina tradicional não tem interesse em estudar ou incentivar uma técnica que pode ser praticada em casa, sem custos. Alegam ainda que, ao aplicar o próprio sangue na musculatura, o paciente provoca uma reação que leva ao aumento da quantidade de macrófagos, células responsáveis por atuar no sistema imunológico e por atacar corpos estranhos. Encontradas em maior quantidade no organismo, os macrófagos reagiriam mais rapidamente a diferentes problemas de saúde.
"Essa é uma teoria, sem nenhuma comprovação científica", afirma o hematologista João Samuel. "Esse tipo de informação surge em tempos de grande preocupação e medo, como este, e acaba por confundir as pessoas, que disseminam informações que não têm nenhuma base nas pesquisas".
"Com essa suposta terapia, você estaria provocando uma reação autoimune a você mesmo", afirma o oncologista Evanius Garcia Wiermann. "Qual é a lógica disso? Não existe nenhum princípio médico, nem lógico, nessa argumentação. Nosso sistema imunológico é autossuficiente".
O especialista lembra também que a prática apresenta riscos para a saúde. Segundo o CFM, a lista de possíveis danos inclui infecções, hematomas, edemas, lesões nos músculos e sangramentos.
"No momento de tirar o sangue, sem a assepsia adequada, a pessoa pode levar as bactérias que habitam a pele para dentro do sistema circulatório, aumentando o risco de infecção. Já no músculo, ele pode provocar um abcesso", diz Wiermann. Em suma, diz o médico, "esse é um procedimento inútil e arriscado".