Quem foi pai ou mãe de criança durante a pandemia deve ter comprovado a dificuldade de fazer com que os pequenos seguissem as regras de assepsia necessárias para conter o avanço do coronavírus. Do bebê de poucos meses que deseja levar tudo à boca ao menino de 5 ou 6 anos que só consegue “ver com as mãos”, parece que existe um magnetismo entre a criançada e o mundo ao seu redor, enquanto nós, adultos, muitas vezes tentamos pôr obstáculos a qualquer tipo de contato com aquilo que não esteja perfeitamente higienizado. Mas será que estamos fazendo certo?
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A discussão sobre o assunto remonta a 1989, quando o epidemiologista inglês David Strachan, depois de estudar mais de 17 mil crianças, propôs o que foi chamado de hipótese da higiene. A ideia é a de que crianças que vivem em ambientes totalmente higienizados são mais propensas a desenvolverem doenças alérgicas – o que explicaria o aumento desse tipo de problema nas últimas décadas. Na época, Strachan simplesmente identificou que havia uma correlação entre as ocorrências de rinite alérgica em crianças e o fato de se ter irmãos maiores: crianças que não eram filhas únicas ou primogênitas eram menos propensas a ter a condição.
No artigo publicado naquele ano no periódico British Medical Journal, o pesquisador concluiu que doenças alérgicas são prevenidas por meio da infecção na primeira infância, “transmitidas pelo contato não higiênico com irmãos maiores ou adquiridas antes de nascer da mãe, infectada pelo contato com os filhos mais velhos”. Assim, “a redução do tamanho das famílias, a melhora das conveniências no lar e a elevação dos padrões de higiene pessoal reduziram as possibilidades de as infecções serem transmitidas em famílias mais jovens”.
Com o tempo, a hipótese da higiene foi ganhando corpo e hoje é muito mais bem fundamentada do que quando Strachan a propos. Um estudo de 2011 realizado pela pesquisadora Rita Pires de Lima Sampaio Peixoto, da Universidade do Porto, revisou a bibliografia científica sobre o tema e identificou que a maior parte das evidências a corrobora. E num estudo de 2015, cientistas do Hospital de Gotemburgo, na Suécia, constataram que crianças que vivem em casas onde se lavam os pratos à mão tinham cerca de metade do risco de sofrer alergias em relação às crianças de casas com máquinas de lavar louça.
Sistema em construção
De fato, o sistema imunológico é composto de uma parte inata, que não tem defesa específica para alguns vírus e bactérias, e de outra adaptativa, capaz de reconhecer novas ameaças ao organismo, desenvolvendo-se à medida que a criança cresce – desde que haja interação com o ambiente. “Adquirimos imunidade nos expondo a uma série de antígenos – vírus, bactérias, etc. – e o nosso organismo cria então uma memória imunológica que nos torna mais fortes quando a exposição ocorre novamente”, explica o pediatra e infectologista Victor Horácio de Souza Costa Jr.
É o mesmo princípio por trás das vacinas, que incutem no organismo um agente semelhante a um microorganismo causador de determinada doença – como o próprio microorganismo em sua forma morta ou enfraquecida –, gerando então imunidade adquirida contra ela. Daí a importância de que a criança esteja exposta à vitamina S – uma brincadeira para se referir à sujeira advinda do contato com os animais, a terra, a vegetação e as outras pessoas.
“Para atingirem seu pleno desenvolvimento imunológico, as crianças precisam ter a sua vida numa normalidade. E é aí que são muito importantes as atividades ao ar livre”, afirma o médico Eitan Berezin, presidente do departamento de infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo. “Não é que a criança não deva ter seus hábitos higiênicos adequados. É que com o contato com o campo, com os animais, há realmente uma melhora do sistema imunológico e a diminuição da tendência a algumas doenças alérgicas.”
Uma geração diferente
As crianças de hoje, porém, viveram o período de isolamento necessário para conter as contaminações de Covid-19, o que tem o seu impacto sobre o desenvolvimento do seu sistema imunológico. “Na pandemia, as crianças ficaram numa bolha durante dois anos. Quando voltaram para a escola, é como se tivesse acontecido um apagão em seu sistema imunológico”, exemplifica Costa Jr., apontando que em abril e maio deste ano houve um aumento de 100% no atendimento de infecções infantis nos postos de saúde.
“As infecções ficaram piores e as crianças mais sensíveis”, diz o médico. E como tirar esse atraso do sistema imunológico? “Infelizmente o único caminho é a exposição. Mas uma coisa é recuperar a imunidade com 7 anos de idade, outra com 2 ou 3 anos de idade”. De fato, quanto menor a criança, mais grave o impacto destes dois anos de isolamento no desenvolvimento de seu sistema imunológico, segundo Costa Jr.
O que fazer
Qual o papel dos pais – e da sociedade como um todo – nesse contexto com desafios tão particulares como o do pós-pandemia? Berezin aponta o caminho: “Utilizar máscara e realizar a profilaxia não medicamentosa, lavando as mãos, é benéfico, porque realmente diminui a incidência de doenças infecciosas. Mas as crianças precisam ter sua vida normal para ter seu desenvolvimento psicomotor, afetivo e imunológico adequados”, comenta. De fato, sem a interação com o mundo exterior o desenvolvimento da criança fica comprometido em vários níveis.
“A possibilidade de se sujar, se machucar e tudo o mais é fundamental para a construção psíquica. Tem relação com a criatividade, a possibilidade de trocas afetivas com outras pessoas, a construção de um corpo que precisa de limites e a capacidade de lidar com as emoções”, explica Cláudia. “O contato com outras realidades auxilia a criança na compreensão de que o mundo não se constitui a partir dela, mas ao contrário, ela faz parte de um contexto na qual necessita compreender as regras para poder estabelecer boas relações”.
Tudo isso é de fundamental importância, mas em meio a todas as recomendações, uma delas é urgente: “Houve uma diminuição da cobertura vacinal no Brasil nos últimos anos, e é preciso recuperar isso”, afirma Berezin. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em todo o mundo, após dois anos de pandemia, foi registrada a maior queda contínua nas vacinações infantis dos últimos 30 anos – e o Brasil está entre os dez países no mundo com a maior quantidade de crianças com a vacinação atrasada. “O principal é obedecer ao calendário de vacinação. O seu abandono traz um risco enorme. Gera outro apagão, nos trazendo doenças que estavam controladas”, completa Costa Jr.