Durante esses seis primeiros meses de circulação do novo coronavírus no mundo, muitas perguntas surgiram e poucas foram sanadas. Mas, pelo menos para um tópico, há respostas.
- "Por que meu vizinho nunca teve nenhum efeito adverso se ele toma hidroxicloroquina há anos?"
- "Por que eu não posso tomar também?"
- "Existe mesmo o risco para o coração?"
Covid-19 não é malária
A primeira coisa a se entender é que a Covid-19 é uma doença que afeta o organismo com uma inflamação sistêmica, atingindo diferentes órgãos, não apenas o pulmão. O coração, por exemplo, é outra das vítimas.
Pesquisadores nos Estados Unidos descobriram, no fim de março, que a doença, sozinha, pode induzir uma miocardite (inflamação do músculo cardíaco), além de aumentar o risco para arritmias. E essa situação é vista na prática pela médica cardiologista Lidia Zytynski Moura.
"O contexto da Covid-19 é diferente. Essa inflamação que a doença faz em todo o corpo, inclusive afetando o coração, também é diferente. Quando há um processo inflamatório no coração, que é causado pela Covid-19, o paciente já fica mais propenso para uma arritmia", explica a especialista, que atua no hospital Marcelino Champagnat, em Curitiba, e é professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Em um coração debilitado ao qual se adiciona uma medicação que, dentre os conhecidos efeitos colaterais está o risco para arritmia, os danos tendem a se potencializar. "A hidroxicloroquina ou HCQ é uma medicação que tem potencial de mexer na parte elétrica do coração, e pode gerar as arritmias. Nunca há um remédio 100% seguro ou isento de efeitos colaterais, e é por isso que todo uso deve ser feito em um contexto de risco e benefício. Sem a evidência de benefícios, o risco, ainda que pequeno, não justifica o uso, e esse é o ponto principal", cita José Rocha Faria, médico cardiologista, também professor da PUCPR.
Assim, ainda que haja o risco cardíaco da hidroxicloroquina entre pacientes com malária ou doenças reumáticas, os benefícios já comprovados da medicação contra essas doenças se sobrepõem ao risco – situação que não é vista no caso da Covid-19.
"A retirada da indicação pelo FDA [do uso da hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19] foi embasada na absoluta falta de evidências até aqui. Mesmo a questão de uso no início dos sintomas, um dos estudos que embasou o órgão americano mostrava que não havia mudança no desenvolvimento da doença nem nestes casos", explica Faria, citando a resolução da agência norte-americana que regula alimentos e medicações.
Arritmia pela hidroxicloroquina
Quando o coração foge do controle do sistema elétrico que o comanda e as batidas acontecem fora da frequência que deveriam, a essa situação dá-se o nome de arritmia cardíaca. Se há uma aceleração, é taquicardia. Diminuição, bradicardia.
O risco, segundo Miguel Morita Fernandes da Silva, médico cardiologista e diretor científico da Sociedade Paranaense de Cardiologia, está em o paciente com a Covid-19 ter um tipo de arritmia chamado de fibrilação ventricular que, na prática, é uma parada cardíaca. "A nossa preocupação é que o uso dessa medicação leve pessoas a morrerem subitamente. Você usa um remédio achando que ele vai te proteger, mas não tem evidências que traga benefício, e ainda pode te matar".
Pessoas com hipertensão, diabetes, colesterol elevado, tabagistas, em sobrepeso, sedentarismo e em estresse são mais propensas a desenvolverem esse quadro. Outras causas incluem histórico familiar e algumas medicações, como antipsicóticos, antialérgicos, antidepressivos, antibióticos (como a azitromicina), além da hidroxicloroquina e da cloroquina.
Embora essa duas últimas sejam usada há décadas contra malária, lúpus e doenças reumáticas, a preocupação dos especialistas com esse efeito colateral aumentou com a chegada da Covid-19. "É um medicamento que, ainda que raro, tem potencial para arritmia. É raro, não é habitual, mas o problema é que quanto mais pessoas fizerem uso, o que é raro torna-se mais comum", explica Gustavo Lenci Marques, médico cardiologista, professor da Universidade Federal do Paraná, da PUCPR e médico dos hospitais Marcelino Champagnat, Cajuru e das Clínicas (HC/UFPR).
O médico lembra ainda que a ameaça tende a ser maior quando a medicação (que por si só tem o potencial arritmogênico) é associada a outros remédios – situação bastante comum em um ambiente hospitalar, especialmente em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A azitromicina, um antibiótico comumente associado à hidroxicloroquina nos estudos clínicos da Covid-19, é um desses remédios que também podem elevar o risco, e a própria Anvisa traz o alerta da fabricante.
"Imagine o uso de uma medicação com esse poder de toxicidade, em um paciente na UTI, que faz uso de outras medicações. É diferente de um paciente que toma em casa, de forma mais isolada, sem tantas outras medicações associadas. E mesmo nesses casos é preciso ter um cuidado enorme. Embora sejam riscos menores, porque são doenças diferentes, ainda assim há um monitoramento dos médicos", explica a cardiologista Lidia Moura, citando pacientes com doenças reumatológicas, que fazem uso da mesma medicação, mas sob orientação médica.
Não é a mesma dosagem
Dentre as demais diferenças do uso da hidroxicloroquina no caso da Covid-19 versus outras doenças está na dosagem. No caso da malária, por exemplo, o paciente ingere 400 mg com intervalos semanais.
Dos seis estudos brasileiros listados na plataforma internacional ClinicalTrials.gov que avaliam a medicação no contexto da pandemia, os pesquisadores administram doses a partir de 400 mg, mas em um intervalo menor: diariamente; duas vezes ao dia; a cada 12 horas; ou mesmo uma dosagem significativa de início (800 mg), com dosagens menores ao longo dos cinco a 10 dias seguintes.
A diferença na dosagem não está errada, visto que são doenças diferentes a serem tratadas. O problema está em compará-las. "Não se sabe ainda a dose para a Covid-19. Isso está sendo estudado. Quanto maior a dose, maior o efeito colateral e não há consenso que a dose baixa, usada para a malária ou doenças reumáticas, seja a dose necessária para ter um efeito contra o novo coronavírus. Malária é uma doença que se estuda há um século, enquanto a Covid-19 tem seis meses, por isso é tudo muito novo", explica Gustavo Lenci Marques, médico cardiologista.
HCQ e Covid-19: há conclusões?
De acordo com o médico cardiologista Miguel Morita, a recomendação sobre o uso de hidroxicloroquina entre pessoas com o diagnóstico da Covid-19, atualmente, é clara: não use se não estiver em um estudo clínico. "Primeiro, não se recomenda o uso disseminado. Mas, se usar, somente em regime de estudo clínico, como os estudos que estão sendo feitos no Brasil, em regime hospitalar, em que o médico pode monitorar o coração do paciente", afirma.
A própria Sociedade Brasileira de Cardiologia, no dia 22 de março, reforçou que não recomenda o uso da hidroxicloroquina, associada ou não à azitromicina, "enquanto não houver evidências científicas definitivas acerca do seu emprego".
Com relação à dúvida comum de muitos brasileiros, Morita é direto: "Para o questionamento de 'meu vizinho sempre tomou e nunca aconteceu nada', o problema é você tomar a hidroxicloroquina sem monitorar o coração. As pessoas querem tomar em casa sem olhar o risco da arritmia diante de uma situação que, na Covid-19, você já pode ter uma lesão no coração. Com o uso do remédio o efeito colateral é potencializado", diz.