A Congregação para a Causa dos Santos, órgão do Vaticano responsável por regular o culto aos santos e beatos católicos, publicou no sábado (16/12) novas normas a respeito da conservação e veneração das relíquias de santos e beatos. O novo regulamento versa pela primeira vez sobre a conservação das relíquias em casos de cremação e sobre o procedimento em caso de discordância entre autoridades eclesiásticas e parentes da pessoa falecida.
A necessidade de um acordo entre os herdeiros de uma pessoa em processo de beatificação e as autoridades da Igreja local surge especialmente diante da crescente canonização de santos leigos, mas não só. Nos Estados Unidos, por exemplo, a causa do arcebispo Fulton Sheen (1895-1979) está travada porque a sua família deseja sepultá-lo em sua cidade natal, Peoria, enquanto a Arquidiocese de Nova York quer que os seus restos permaneçam na catedral da cidade. Em 2016, um tribunal decidiu a favor da sobrinha do arcebispo, mas a arquidiocese recorreu.
As novas normas estabelecem que antes de qualquer operação que envolva os restos mortais de uma pessoa morta em fama de santidade, é necessário obter o consenso dos seus herdeiros. O texto diz ainda que, antes da beatificação de uma pessoa, o seu herdeiro deve ser “convidado” pelo bispo local a doar os seus restos mortais à Igreja, mediante instrumentos jurídicos adequados.
As normas também reiteram veementemente a proibição do comércio de relíquias, que ganhou um novo impulso com a internet. Hoje é possível encontrar milhares de relíquias à venda em sites como o Ebay e o Mercado Livre. A Igreja Católica proíbe expressamente, no Código de Direito Canônico, a venda de relíquias.
Veneração
Mas de onde vem o costume de venerar as relíquias, mantido por católicos e ortodoxos? As relíquias costumam ser partes dos restos mortais de algum santo ou beato venerado pelos cristãos – desde o corpo todo ou suas cinzas até pedacinhos de ossos, fios de cabelo e tecidos manchados de sangue.
Na Igreja Católica, admitem-se também como relíquias os objetos pessoais usados pelo santo – roupas, livros, acessórios, etc. –, que são chamados de relíquias de segunda classe, e até mesmo pedaços de tecido que tocaram no corpo do santo após a sua morte ou em seu túmulo, chamados de relíquias de terceira classe.
A conservação dos restos mortais dos mártires – a devoção aos santos teve início com o culto aos mártires, estendendo-se apenas no século V aos cristãos não martirizados – é algo que se deu de maneira muito natural já no início do cristianismo. O primeiro historiador da Igreja, Eusébio de Cesareia (265-339), em seu relato sobre o martírio sofrido pelas comunidades cristãs de Lyon e Vienne em 177, afirma que os perseguidores jogaram as cinzas dos mártires em um rio, para evitar que se tornassem objeto de culto.
O II Concílio de Niceia, em 787, deixou claro que o respeito que se devem às relíquias não é ao objeto em si, mas ao santo a ele relacionado, e que o culto aos santos é, em última instância, uma honra devida a Deus por aquilo que ele realiza na vida dos que o seguem. Assim, o foco não está nos milagres possivelmente ocorridos através do contato com as relíquias, mas nas relíquias como sinais da santidade de Deus que se torna salvação para aqueles que nele creem.
A Idade Média foi o período em que o culto das relíquias mais se deformou, tanto como magia e superstição quanto como recurso para visibilizar alguma igreja como mais importante do que outras. Nesse período, se difundiram numerosas relíquias falsas e se constituiu um verdadeiro mercado em torno das peças. O IV Concílio de Latrão (1215-1216) passou então a exigir aprovação do papa para a exposição das relíquias, além de proibir a sua venda.
A preservação de relíquias, aliás, é também uma prática do islamismo e do budismo. No Palácio Topkapi, em Istambul, por exemplo, são conservados um manto, um dente e uma carta escrita por Maomé. Os budistas mantêm relíquias de Buda em diversos templos da Ásia.
Hoje
Tanto ortodoxos quanto católicos mantêm até hoje o culto às relíquias, que cada vez mais se liberta de concepções supersticiosas e é entendido de modo teologicamente adequado. Em todas as celebrações de beatificação e canonização, por exemplo, se expõe uma relíquia do novo beato ou santo, como sinal da concretude da salvação de Deus, que age eficazmente na nossa história.
Na canonização de São João Paulo II, por exemplo, foi entronizado um relicário contendo um pouco de sangue do papa, preservado por um hospital que o guardou em caso de necessidade de transfusão. Na beatificação do papa Paulo VI, foi apresentado um relicário contendo a camiseta que ele usava por baixo da batina quando foi alvo de um atentado a faca em 1970, em Manila.
Um momento muito significativo da história recente da Igreja Católica foi quando o papa Francisco, no encerramento do Ano da Fé, em 2013, rezou o Creio segurando em suas mãos uma urna com os prováveis restos mortais do apóstolo São Pedro, que são conservados na cripta sob o altar principal da Basílica de São Pedro. A urna foi feita em 1971, três anos depois de Paulo VI confirmar, com bastante probabilidade, que os ossos do apóstolo tinham sido identificados.
Já durante o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, em 2016, Francisco quis que fossem expostas na Basílica de São Pedro os corpos de dois santos reconhecidos por sua misericórdia como confessores: São Pio de Pietrelcina, cujas relíquias são mantidas em seu santuário em San Giovanni Rotondo, e São Leopoldo Mandic, cujo santuário é em Pádua.
Em Roma, há uma igreja dedicada a preservar a memória dos mártires dos séculos XX e XXI, com um olhar ecumênico. Desde 1999, por decisão de São João Paulo II, a Basílica de São Bartolomeu é dedicada aos “novos mártires”. Ali estão objetos como o breviário do padre francês Jacques Hamel, morto em 2016 por extremistas islâmicos; uma carta do pastor Paul Schneider, escrita no campo de concentração de Buchenwald, onde ele foi morto durante a II Guerra Mundial; e um paramento do arquimandrita ortodoxo Sofián Boghiu, que passou 16 anos em campos de trabalhos forçados mantidos pelos soviéticos.
Brasil
Em numerosas igrejas do Brasil, são conservados pequenos relicários com fragmentos de ossos ou pedacinhos de vestes de diversos santos e beatos. Entre outras relíquias maiores, podem ser visitados: o túmulo de Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, no Mosteiro da Luz, na capital paulista, e objetos pertencentes a ele no Museu Frei Galvão, em Guaratinguetá (SP); o fêmur de São José de Anchieta, no Pateo do Collegio, em São Paulo; o osso do braço de Santa Paulina, em seu santuário em Nova Trento (SC), e o seu túmulo na casa-mãe de sua congregação, em São Paulo; além dos numerosos túmulos de beatos brasileiros, em cidades como Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre.
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