Nesta sexta-feira (12/02), o papa Francisco e o patriarca ortodoxo Kirill vão protagonizar o primeiro encontro já realizado na história entre o bispo de Roma e o bispo de Moscou, a mais numerosa das igrejas ortodoxas, com cerca de 150 milhões de fiéis. Trata-se de um encontro aguardado há quase mil anos, desde que o cristianismo se dividiu entre Igreja do Ocidente e do Oriente.
Entenda a seguir porque católicos e ortodoxos se separaram e porque essa distância foi mantida até hoje entre as duas grandes ramificações do cristianismo.
A história da divisão
Em 330 d.C., o imperador Constantino decidiu fazer de Constantinopla a “nova Roma” e torná-la a capital do Império. Em 381, o bispo da cidade alegou um primado de honra logo abaixo do de Roma. O imperador Teodósio foi o último a governar um império unificado, com sede em Constantinopla. Depois de sua morte, o Império Romano se dividiu em Império do Oriente e Império do Ocidente. Com isso aumentaram as pretensões do bispo de Constantinopla, que no Concílio de Calcedônia, em 451, obteve a confirmação de seu posto de honra e uma jurisdição efetiva em várias dioceses, decisão adotada depois da saída dos legados romanos do Concílio e nunca reconhecida pelo papa.
Em Constantinopla, se desenvolveu pouco a pouco a convicção de que o bispo deveria ter sobre o Patriarcado uma autoridade absoluta, ainda que se devesse reconhecer, em nível honorífico, inferior ao bispo de Roma, que teria então uma autoridade absoluta sobre os territórios do Ocidente. Outros fatores contribuíram para a separação, como a diferença da cultura latina e da greco-oriental, a ênfase teológica distinta e a política dos imperadores do Oriente, que não viam com bons olhos que a Igreja de seu Império dependesse de uma autoridade estrangeira – o papa – o que os levava a apoiar as pretensões dos patriarcas.
Depois de um breve cisma entre 863 e 867, findado pelo patriarca Fócio de Constantinopla, o cisma definitivo se deu em 1054, com o patriarca Miguel Cerulário, que não rompeu relações com Roma, porque elas de fato já não existiam, mas fez fracassarem todas as tentativas de retomada de relações e voltou a abrir a polêmica contra os ritos e os usos latinos iniciada por Fócio. As Igrejas do Oriente, seguindo Constantinopla, deixaram de reconhecer o primado de jurisdição do papa.
As diferenças
O que hoje nós chamamos de Igreja ortodoxa – palavra que significa “doutrina correta” – é uma comunhão de quatorze Igrejas autocéfalas, isto é, autônomas, que professam a mesma fé e, com algumas diferenças culturais, celebram os mesmos ritos. Elas reconhecem no Patriarcado Ecumênico de Constantinopla um primado de cunho apenas honorífico, não tendo o patriarca de Constantinopla jurisdição sobre os demais patriarcados.
Há poucas diferenças doutrinais entre os católicos e os ortodoxos. Uma das mais expressivas, que catalisou o debate teológico na época do cisma de 1054, diz respeito ao Espírito Santo. Enquanto os ortodoxos dizem que ele procede apenas de Deus Pai, os católicos acreditam que ele proceda do Pai e do Filho. Ultimamente, porém, isso tem sido visto mais como uma diferença de ênfase teológica do que como uma diferença propriamente de dogma.
Embora não estejam em plena comunhão, a Igreja católica reconhece a validade dos sacramentos celebrados e a presença da legítima sucessão apostólica nas Igrejas ortodoxas. Além da questão central do primado de jurisdição do papa, as grandes diferenças entre os dois grupos se referem sobretudo a questões de calendário, normas disciplinares, usos e costumes culturais.
Proselitismo
Um dos problemas existentes entre a Igreja Católica e o Patriarcado de Moscou é a acusação de proselitismo que a Igreja russa dirige aos católicos, que usariam de atividades caritativas, como creches, com o fim de difundir a fé católica entre os ortodoxos. No começo do século XXI, as relações entre os católicos e os ortodoxos russos se dificultou. Em 2002, João Paulo II transformou as administrações apostólicas do território russo em dioceses, suscitando protestos oficiais da Igreja russa, incluindo a expulsão de um bispo e quatro padres católicos do país.
Tadeusz Kondrusiewicz, que foi arcebispo católico de Moscou, afirmava que a acusação era infundada: “Não queremos invadir o território de ninguém, não queremos roubar fiéis de ninguém. Aliás, afirmamos com vigor o princípio de que todo homem tem direito a escolher a sua própria fé. Mas se o Patriarcado de Moscou pode ter paróquias na Itália e em outros países da Europa, nas quais prestam serviços sacerdotes que em muitos casos quase nem falam russo, por que a Igreja católica não teria o direito de existir e atuar na Rússia?”, disse ele à imprensa religiosa na época da polêmica.
Contudo, o patriarca de então, Aleixo II, era muito explícito sobre essa questão: “Os documentos sobre o proselitismo católico, em seu núcleo fundamental, são o resultado de uma investigação escrupulosa e objetiva da situação real.” Na Rússia, os católicos são menos de 1% da população.
Outro fator de discordância é a situação da Igreja greco-católica ucraniana, de rito oriental e língua litúrgica ucraniana, que mantém a comunhão com Roma. É o chamado “uniatismo”: as Igrejas de rito oriental que aceitaram voltar à plena comunhão com o papa mantendo os próprios ritos, cultos e tradições e uma ampla autonomia eclesiástica. O uniatismo foi motivo de polêmica entre a ortodoxia e o catolicismo: para os ortodoxos, as Igrejas uniatas são um instrumento do proselitismo latino.
O caminho para a unidade
Até o século passado, não havia sido realizado nenhum encontro entre os líderes da Igreja católica e da ortodoxa. O primeiro encontro de um papa com um patriarca se deu em 1964, quando Paulo VI se reuniu em Jerusalém com o patriarca ecumênico de Constantinopla, Atenágoras. Naquela ocasião, ambos se retrataram das excomunhões que as Igrejas trocaram em 1054.
O diálogo entre católicos e ortodoxos se estreitou cada vez mais desde então. João Paulo II falava da necessidade de alcançar uma “comunhão afetiva”, antes de se chegar a uma “comunhão efetiva”. Bento XVI, por sua vez, visitou o patriarca ecumênico Bartolomeu na Turquia, em 2006, que retribuiu a visita em 2008, na festa de São Pedro e São Paulo, quando o papa e o patriarca dividiram a homilia e rezaram o credo juntos em grego. No mesmo ano, Bartolomeu participou do Sínodo dos Bispos no Vaticano.
Quando Francisco foi eleito, em 2013, Bartolomeu compareceu à missa de inauguração do pontificado, o que nunca tinha acontecido desde o cisma. Em 2014, o papa e o patriarca repetiram o gesto de Paulo VI e Atenágoras em Jerusalém, celebrando os 60 anos do acontecimento. Logo depois, quando Francisco reuniu os presidentes de Israel e da Palestina para um momento de oração no Vaticano, Bartolomeu também marcou presença.
No ano passado, Francisco se mostrou disposto a alterar a data em que os católicos celebram a Páscoa para que a principal festa do cristianismo fosse celebrada simultaneamente por católicos e ortodoxos. Além disso, o ensinamento de Bartolomeu sobre o cuidado com o meio ambiente, tema que lhe é muito caro, mereceu toda uma seção da última encíclica de Francisco, Laudato Si’.
Um passo que ainda não havia sido dado era o encontro de um papa com o patriarca de Moscou. Era um evento aguardado há muito tempo, dada a importância da Igreja russa dentro da ortodoxia: é a maior e mais numerosa das Igrejas autocéfalas ortodoxas do mundo, com quase 150 milhões de fiéis. As tensões nas relações entre católicos e ortodoxos na Rússia impossibilitavam a realização de um encontro cordial. Pouco a pouco, as relações foram se estreitando, com o cada vez mais frequente encontro de delegações das duas Igrejas. O patriarca Kirill, como seu antecessor, também foi muito crítico em relação à Igreja católica, mas quando inaugurou o sínodo dos bispos da Igreja ortodoxa russa, em 2 de fevereiro de 2013, falou do “claro reconhecimento da necessidade de unir forças em defesa dos valores tradicionais cristãos e se contrapor a algumas ameaças da modernidade, como a secularização agressiva, que ameaça as bases morais da vida social e privada, a crise dos valores da família e a perseguição e discriminação dos cristãos no mundo”.
O Sínodo Pan-Ortodoxo
Em março de 2014, os primazes ortodoxos realizaram uma Sinaxe, nome que dão às suas reuniões, em Istambul. Naquela ocasião, decidiram convocar um Sínodo Pan-Ortodoxo, o “Santo e Grande Concílio da Igreja Ortodoxa”, que será realizado entre 16 e 27 do próximo mês de junho, sob a presidência do patriarca ecumênico Bartolomeu, com participação de delegações de todas as Igrejas ortodoxas autocéfalas.
O Sínodo estava inicialmente previsto para ser realizado em Istambul, mas devido a tensões internacionais entre a Turquia e a Rússia, que colocariam em risco a presença no encontro dos representantes do Patriarcado de Moscou, a sede foi transferida. Na última Sinaxe, ocorrida no mês passado em Chambésy, na Suíça, os primazes escolheram como nova sede Creta, ilha sob a jurisdição do patriarcado de Constantinopla, por oferecer condições logísticas mais favoráveis e por já ter abrigado conferências teológicas.
Em Chambésy, foram aprovados os temas parte da agenda do Sínodo. Entre estes, além da “missão da Igreja ortodoxa no mundo contemporâneo”, está presente também a questão das relações da Igreja ortodoxa com as outras Igrejas cristãs. Também foi aprovada a participação de observadores não ortodoxos durante as sessões de abertura e de encerramento do Sínodo. Uma reunião ortodoxa dessa magnitude nunca havia acontecido desde o cisma de 1054.
Com informações de News.va, L’Osservatore Romano e Aleteia.