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O papa Francisco desembarcou nesta sexta-feira (12/05) em Fátima, em Portugal, na 19ª viagem internacional de seu pontificado. Será a sexta vez que um pontífice pisa no santuário que recorda as aparições de Maria a três crianças durante o ano de 1917: Paulo VI visitou o local em 1967, João Paulo II em 1982, 1991 e 2000 e Bento XVI em 2010. Além desse claro interesse dos papas, a devoção a Nossa Senhora de Fátima exerce no mundo todo um fascínio difícil de superar – fruto, sem dúvida, do mistério que envolveu os chamados “segredos” de Fátima nesses cem anos.

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O Santuário de Fátima está longe de ser o mais visitado do mundo. Enquanto Aparecida costuma receber cerca de 12 milhões de visitantes por ano e Guadalupe, no México, chega a 20 milhões, Fátima espera em 2017 receber 8 milhões de visitantes, mesmo sendo o ano de seu centenário e de uma visita papal. O interesse pelas aparições, porém, segue firme – tanto que rumores surgidos em 2016, dizendo que os segredos de Fátima não tinham sido divulgados completamente, chegaram a merecer um desmentido oficial do papa emérito Bento XVI, publicado no site do Vaticano.

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Mas em que consistem esses segredos? Em 13 de maio de 1917, três reportaram ter visto uma mulher cheia de luz que eles identificaram como sendo Maria, a mãe de Jesus. A partir daí, ela falou com eles seis vezes, em aparições marcadas para o dia 13 de cada mês. Na última aparição, em outubro, 70 mil pessoas relataram ter visto o sol dançar no céu e mudar repetidamente de cor, o que ficou conhecido como “milagre do sol”. Das três crianças, duas faleceram poucos anos depois: os irmãos Francisco e Jacinta, que serão canonizados pelo papa amanhã (13/05). A outra, Lúcia, prima deles, se tornou religiosa carmelita e morreu em 2005, aos 97 anos.

Foi na terceira aparição, em julho, que Maria teria revelado às três crianças um “segredo”, em tons proféticos, dividido em três partes. Na primeira parte Maria teria lhes mostrado o inferno. A segunda parte fala de uma nova guerra que começará “no reinado de Pio XI” – que só seria eleito papa cinco anos depois das aparições – e da perseguição que se afligirá à Igreja. Além disso, Maria fala que deseja impedir que a Rússia “espalhe seus erros pelo mundo” e diz que, se seus pedidos forem atendidos, “a Rússia se converterá”.

 

Fátima e o atentado ao papa

Embora seja essa segunda parte a que mais teve repercussão política ao longo do século passado, a terceira parte do segredo também ajudou a aumentar o mistério em torno da devoção a Nossa Senhora de Fátima. Isso porque ela foi guardada a sete chaves até o ano 2000, quando o seu conteúdo foi divulgado durante uma visita de João Paulo II ao santuário.

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Trata-se de uma visão que mostra uma multidão de cristãos atravessando um cenário catastrófico, guiada por “um bispo vestido de branco”. Ao chegar ao cimo de um monte, onde há uma grande cruz, tanto o bispo quanto as outras pessoas – outros bispos, padres, religiosos, religiosas e leigos – são martirizados.

O então cardeal Joseph Ratzinger – mais tarde Bento XVI –, em um comentário teológico incluso no documento da Congregação para a Doutrina da Fé “A mensagem de Fátima”, interpretou a visão como uma descrição simbólica do caminho da Igreja no século XX, caracterizado por intensas perseguições – que culminaram no atentado que feriu João Paulo II em 1981.

Um ano após ser baleado, João Paulo II sofreu outro atentado

Assim, por motivos óbvios, o papa polonês se demonstrou especialmente ligado à devoção. O atentado que quase o matou aconteceu justamente num 13 de maio e o atirador, Mehmet Ali Agca, foi detido após os disparos coincidentemente por uma freira chamada Lúcia. Já bem antes da divulgação da terceira parte do segredo, o papa disse que foi “uma mão materna” que guiou a bala e impediu que o tiro fosse letal. Sua primeira visita a Fátima aconteceu precisamente um ano após o atentado, como agradecimento. Hoje, uma das balas que o atingiram está incrustada na coroa da imagem oficial de Nossa Senhora de Fátima.

 

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A política portuguesa

A menção à Rússia na segunda parte do segredo não passou despercebida em períodos tão efervescentes da história contemporânea. De fato, em 1917 estava em curso a Revolução Russa, que em novembro colocaria no poder o Partido Bolchevique de Lênin. Além disso, essa parte do segredo foi tornada pública em 1942, em plena II Guerra Mundial – o que não a isentou de ser usada para manipulação ideológica.

Isso começou já no contexto político português. No ano das aparições, estava à frente do governo de Portugal Afonso Costa, um anticlerical que desde 1910 impulsionou medidas como a expulsão dos jesuítas do país, a expropriação dos bens das ordens religiosas, a proibição de cerimônias religiosas fora dos templos, do toque dos sinos e do uso de vestes talares (batinas e hábitos) e a necessidade de beneplácito do governo para a publicação de documentos dos bispos e do papa. Estima-se ainda que cerca de 1800 padres, monges e freiras tenham sido mortos no país entre 1911 e 1916.

Devido a esse contexto, o golpe liderado por Sidônio Pais, em dezembro de 1917, ainda que tenha instituído um governo autoritário, foi recebido com alívio pela Igreja. Antonio de Oliveira Salazar, por sua vez, que subiu ao poder em 1932, também soube se aproveitar do renascimento do catolicismo português que as aparições promoveram.

Documentário sobre Nossa Senhora de Fátima comemora centenário das aparições

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“É inegável que o renascimento religioso, que Fátima diretamente provocou, contribuiu indiretamente para legitimar um poder que se mostrava respeitoso das liberdades religiosas, embora não dos direitos civis e políticos”, explica o teólogo Clodovis Boff em seu livro Mariologia social. Tanto foi assim que os bispos só passaram a criticar os excessos do regime salazarista tardiamente, a partir de 1958.

 

O impacto geopolítico

À medida que a devoção a Nossa Senhora de Fátima se popularizava – sobretudo a partir de 1947, quando começaram as peregrinações oficiais de imagens de Fátima pelo mundo –, mais impacto a sua mensagem gerava na política mundial. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos e as ditaduras latino-americanas não hesitaram em usá-la como propaganda anticomunista.

Um padre norte-americano, por exemplo, criou uma associação de devotos chamada Exército Azul – em contraposição ao Exército Vermelho soviético. A pregação direitista na associação era tão explícita que o próprio Kremlin pensava se tratar de um grupo ligado à CIA. Já no Brasil, a devoção foi adotada com fervor pelo movimento Tradição, Família e Propriedade.

Para Boff, uma leitura fiel da mensagem não legitima a demonização da Rússia, já que a solução proposta por Maria é a oração e a consagração do país ao seu Imaculado Coração. “É como se a Virgem dissesse: não odeiem nem combatam essa pobre nação, mas coloquem-na no meu regaço, entreguem-na ao meu coração de mãe!”, explica o teólogo.

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Também os nazistas se incomodaram com a mensagem de Fátima, e isso por três razões. A primeira é que a promessa de que a Rússia se converteria minava a propaganda nazista, que tratava o bolchevismo como a maior ameaça à Alemanha. Além disso, toda a centralidade da paz na mensagem de Fátima irritava os nazistas, que consideravam a propagação da devoção “particularmente perigosa”, “porque apresenta os esforços bélicos com o emprego das armas como insignificantes e inúteis”, como revela um documento do Ofício Central para a Segurança do Reich.

A terceira razão é que, por motivos diplomáticos, o papa Pio XII omitiu o nome da Rússia ao consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, em 1942. A Alemanha considerou, então, que o “dilúvio do neopaganismo, que é inteiramente materialístico” citado pelo papa era uma referência velada ao nazismo, quando, na verdade, ele falava do ateísmo de Estado soviético. Uma primeira versão do texto da segunda parte do segredo, que também omitia a menção à Rússia, serviu para alavancar as suspeitas dos nazistas contra Pio XII.

 

No século XXI

Fato é que, para além do uso ideológico, João Paulo II e muitos outros bispos e fiéis católicos atribuíram o fim do comunismo no Leste Europeu à intercessão da Virgem de Fátima. O modo sutil, sem rebeliões nem guerras, com que a União Soviética se esfacelou foi interpretado como um sinal do cumprimento da profecia de Fátima. O diálogo se firmou cada vez mais como via de resolução dos conflitos, embora ainda com graves exceções.

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O cardeal Joachim Meisner, por exemplo, que foi arcebispo de Berlim de 1980 a 1988, disse: “Que o baluarte do ateísmo tenha vacilado por obra de Maria é para mim a coisa mais óbvia e natural do mundo: a revolução anti-soviética começou em Fátima com a Virgem e as três crianças”. O próprio João Paulo II, visitando Fátima em 1991, agradeceu a Nossa Senhora “pelas mudanças inesperadas que restituíram a confiança a povos longamente oprimidos e humilhados” e “pela constante proteção que nos livrou de tragédias e destruições irreparáveis e favoreceu o progresso e as conquistas sociais dos nossos dias”.

Com o fim do domínio soviético, numerosos povos puderam voltar a praticar livremente a sua fé e viver em paz em suas nações. Como João Paulo II lembrou na visita de 1991, porém, “existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã”.

Segundo Clodovis Boff, “continua o desafio lançado por Fátima, agora voltado contra o próprio Ocidente, que se serviu muitas vezes abusivamente de sua mensagem com o objetivo de combater o mundo socialista, a pretexto de combater o ateísmo comunista. Seu potencial libertador continua vivo, deixando jorrar sentido e inspiração”. Se prevalecer, pois, a fidelidade às intenções originais das aparições, a mensagem de Fátima tem fôlego para permanecer mais 100 anos sob os holofotes.

 

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