Mil anos antes de que Vladimir Putin governasse o país sede da Copa do Mundo de 2018, a parte europeia da Rússia era governada por outro Vladimir. A Rus’ de Kiev, uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu, tinha à sua frente o príncipe Vladimir, o Grande, que, desejoso de conferir maior unidade a um território um tanto quanto mal costurado, decidiu implantar uma religião oficial.
Conta uma crônica medieval que Vladimir decidiu examinar as opções que tinha diante de si antes de definir o credo oficial. Ele teria convidado um sacerdote católico da Alemanha, outro de Bizâncio, um rabino da Cazária e um imã da Bulgária para que falassem sobre a sua fé. O vencedor teria sido o bizantino – era, aliás, muito conveniente estabelecer laços mais estreitos com o Império Bizantino.
Seja mais ou menos verdadeiro, o episódio é muito simbólico no que se refere ao cenário religioso russo. Extremamente peculiar e diversificado, esse cenário tem por trás de si uma história de aproximações amistosas, relações diplomáticas, períodos de repressão e regulamentações estritas nas interações entre o Estado e as diversas religiões. Saiba um pouco mais sobre esse curioso mosaico religioso que a Rússia constitui:
1. Há leis que controlam de maneira bastante estrita a expressão religiosa
Nem toda organização religiosa pode atuar livremente no país, embora a constituição da Federação Russa reconheça o direito à liberdade religiosa. Uma lei de 1997 estabelece três categorias de comunidades religiosas com diferentes direitos. “Grupos religiosos” não precisam se registrar junto ao governo, mas tampouco podem abrir contas em bancos, ter propriedades, conduzir cultos abertos ao público, ter lideranças estrangeiras e publicar materiais impressos. Para isso, precisam se registrar como “organização religiosa local”, mas só depois de atuar durante pelo menos 15 anos como “grupo religioso”. O terceiro nível é o de “organização religiosa central” e pode ser requerido quando uma mesma denominação tem pelo menos três organizações religiosas locais. Com esse status, é possível abrir organizações locais sem o período de espera. O preâmbulo da lei, aliás, reconhece o cristianismo, o islã, o budismo e o judaísmo como “parte inseparável da herança cultural russa”. Uma lei de 2017 tornou a regulação ainda mais restrita: com o intuito de combater o extremismo e o terrorismo, proibiu a expressão religiosa fora de lugares de culto registrados junto ao Estado. Testemunhas de Jeová, mórmons e o Movimento Hare Krishna foram os mais afetados pela lei, já que a sua origem estrangeira recente e a sua índole proselitista têm dificultado o seu cadastro nos órgãos do governo.
2. O Patriarca Ecumênico de Constantinopla pode ser o líder simbólico do cristianismo ortodoxo, mas o mais poderoso é o Patriarca de Moscou
Isso porque dois terços dos ortodoxos de todo o mundo são membros da Igreja Ortodoxa Russa – e estão, portanto, atualmente sob a jurisdição de Kirill, “Patriarca de Moscou e de todas as Rússias”. Essa história começou no século X, quando o príncipe Vladimir I adotou o cristianismo como a religião oficial da Rússia, encomendando a destruição de estátuas de antigos deuses e enviando exércitos para batizar os territórios. A unidade da Igreja já estava fragilizada e o cisma do Oriente aconteceu poucas décadas depois. Hoje os ortodoxos russos, que estão mais concentrados na parte europeia do país, compõem 41% da população, mas apenas cerca de um quarto deles é praticante.
3. A Rússia tem o único território oficialmente judaico do mundo além de Israel
A Rússia conta com um Oblast Autônomo Judaico – “oblast” é como são chamadas as “províncias” russas –, que fica no sudeste do país, na fronteira com a China. Criado por Josef Stalin em 1934, a área tinha por objetivo dar à população judaica russa seu próprio território, para que ela preservasse o patrimônio cultural iídiche dentro da estrutura socialista. O próprio Stalin, porém, ordenou expurgos na região, com a prisão e execução de líderes judeus e a tentativa de apagar traços de sua cultura. Com isso, hoje apenas 1,2% da população do oblast é composta por judeus étnicos. Nos últimos 15 anos, a comunidade judaica tem buscado retomar a preservação da sua identidade na região.
4. O islã na Rússia tem uma longa história e foi semi-oficializado pela primeira vez há mais de 200 anos
Depois do cristianismo, o islã é a segunda maior religião da Rússia. Os muçulmanos compõem 6,5% da população – cerca de 9,5 milhões de pessoas, a maioria delas sunitas. Em alguns oblasts eles passam dos 30% da população. O islã está presente no que hoje é o território russo desde o século VIII e mantém relações oficiais com o governo desde o reinado de Catarina, a Grande, imperadora da Rússia entre 1762 e 1796. Depois de legalizar a prática do islã, ela criou a Assembleia Espiritual Muçulmana de Oremburg para regulá-la. Seu reinado chegou a até mesmo subsidiar a edificação de mesquitas. A aproximação com o islã foi um movimento de Catarina para conseguir ter certo controle sobre o fenômeno religioso – depois que as suas tentativas de converter os muçulmanos à ortodoxia não deram certo.
5. A mais extensa diocese católica do mundo fica na Rússia
Em todo o território russo, há apenas quatro dioceses católicas, entre as quais a Diocese de Irkutsk, que é a maior do mundo em área, com mais de 9,9 milhões de quilômetros quadrados. Se fosse um país, essa diocese, que ocupa o leste da Rússia, seria o terceiro maior do planeta. A proporção de católicos na Rússia, porém, é baixíssima: são apenas 140 mil, sendo cerca de 50 mil nessa diocese. Ou seja, o bispo Cyryl Klimowicz, nascido no Cazaquistão, tem uma população equivalente à de muitas paróquias brasileiras para pastorear, mas que está espalhada em um território maior do que o Brasil.
6. Os cristãos “tradicionalistas” russos se revoltaram com reformas eclesiais já no século XVII
Se os católicos tradicionalistas não aceitam a renovação do Concílio Vaticano II, que ocorreu na década de 1960, os grupos que poderiam ser chamados de tradicionalistas ortodoxos puxaram o freio de mão nas reformas eclesiais trezentos anos antes: os chamados “velhos crentes” são cristãos que entraram em cisma com a Igreja Ortodoxa Russa por não aceitarem reformas introduzidas pelo Patriarca Nikon em 1666. Os velhos crentes estão presentes também em outros países, oriundos de migrantes russos, mas só na Rússia eles totalizam cerca de 400 mil fiéis – um grupo, portanto, mais expressivo do que os católicos ou os judeus.
7. Existe uma espécie de “protestantismo” russo que se formou sem influência da Reforma Protestante
E não é apenas o tradicionalismo cristão que tem uma versão made in Russia. Os doukhobory, chamados também de “protestantes populares” ou “cristãos espirituais”, formam uma espécie de protestantismo que se formou sem influência do protestantismo ocidental. Os primeiros registros desses grupos datam do século XVIII, mas é possível que eles já existissem antes. Como a Reforma Protestante europeia, eles têm uma visão menos hierárquica e menos ritualizada do cristianismo, defendendo a livre interpretação da Bíblia e o contato revelador do Espírito de Deus com cada indivíduo. Perseguidos, os doukhobory foram protagonistas de um fluxo migratório entre o fim do século XIX e o começo do século XX, transferindo-se sobretudo para o Canadá. Hoje cerca de 3 mil canadenses se professam doukhobory. A partir do fim dos anos 1980, muitos deles têm voltado para a Rússia.
8. Religiões étnicas, de tendência animista e xamânica, são mais fortes do que você pensa
1,2% da população russa, ou 1,7 milhão de pessoas, praticam religiões étnicas, de tendência animista e xamânica, como o tengriismo, localizadas principalmente no leste do país. Entre os praticantes dessas religiões, contam-se tanto populações tradicionais fiéis a tradições ancestrais da Ásia Central e da Sibéria quanto novos movimentos que se inspiram em rituais pagãos e em tradições étnicas, como a chamada Fé Nativa Eslava. Outros 700 mil russos são budistas – 0,5% da população. Ainda que a maioria deles esteja concentrada na região da fronteira com a Mongólia – lá chegam a 30% da população –, grandes cidades russas como Moscou e São Petersburgo contam com mais de 1% de budistas em sua população.
9. O ateísmo foi de proibido a oficial em menos de cem anos
No século XIX, chegou a ser proibido na Rússia não ter religião. O código penal de 1845 previa uma punição de oito a dez anos de trabalhos forçados para quem deixasse o cristianismo ortodoxo, por exemplo. É curioso que pouco mais de 70 anos depois a Revolução Russa tenha instituído um Estado oficialmente ateísta. O governo russo chegou até mesmo a abrir, em 1964, um Instituto para o Ateísmo Científico, que funcionou até o colapso do regime soviético, em 1991. A constituição atual preconiza o Estado laico. Segundo dados de 2012, mais de um terço da população russa – 38% – se declara sem religião, sendo que 13% são ateus e 25% creem em Deus ou em alguma força superior mas não são adeptos de nenhuma tradição religiosa específica.
10. Um russo está construindo um “Templo de Todas as Religiões”
O artista e filantropo Ildar Khanov está erigindo desde 1992 em Kazan o Templo de Todas as Religiões. A ideia é que a edificação tenha 16 cúpulas, uma para cada grande religião da história da humanidade. O local combina ambientes que remetem a arquitetura de mesquitas, igrejas ortodoxas e outros templos, mas não serve como local de culto para nenhuma religião: é, antes, na definição de Khanov, um “templo da cultura e da verdade”.
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