Desde cedo, o sonho da maternidade me foi alimentado como condição natural e inexorável de ser feliz em um filme de vida perfeita. Não sabia, no entanto, que o desejo de ter filho e de formar a família "perfeita" se tornaria, quando mãe de adolescente, a experiência de uma vida real cheia de imperfeições.
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Paguei o ingresso para um filme de família perfeita a partir de um modelo ideal e romântico de mãe educadora e carinhosa, mulher forte e determinada e esposa parceira e amorosa. À medida em que crescia, observava e idealizava a minha vez de construir a família tão sonhada: "Com certeza: quero concretizar este roteiro", pensava comigo, "E, enfim, viverei o famoso "'felizes para sempre'".
O começo do filme
Então adulta, encontrei minha "cara-metade"; era o começo do projeto que, enfim, começava a acontecer de verdade. Veio o casamento e, depois, o primeiro filho. Tudo seguia o roteiro esperado e ideal. O filme certamente seguia para o sucesso. O bebê crescia e se desenvolvia proporcionalmente à felicidade familiar. Como uma esponjinha, meu filho absorvia absolutamente tudo o que lhe era apresentado, com enorme interesse e curiosidade.
O progresso do filme familiar era admirável: a cada novidade, o reconhecimento de que trilhava o caminho certo. Encantava-me a capacidade de aprendizado do filho; fascinava-me sua inesgotável disposição de conhecer o mundo aberto bem diante dele. O filme da família perfeita era real. De fato, existia e, para mim, já estava pronto.
Assim, feliz e realizada, vivi os primeiros anos da maternidade quando bastava atender as necessidades daquele ser cativante e totalmente dependente para sentir-me competente e satisfeita na função de mãe. Não sabia que o filme, na verdade, estava só... começando.
A fase de transição da família perfeita
Blockbusters costumam lançar continuações às suas histórias; o meu, também, mas sem planejamento. Surpreendida por uma continuidade não pensada, me deparei com a adolescência despreparada para as mudanças de roteiro. O bebê doce, esperto, amoroso, alegre e dependente cresceu e mudou... drasticamente. Surpreendida pela fase, descobri que o filme idealizado tomava novos – e assustadores – rumos, os quais não só não dominava, como desconhecia.
Senti-me, então, perdida. O novo roteiro, agora imposto, parecia-me impossível de ser implementado. O ator, até então encantador coadjuvante que conhecia como a palma de minha mão, mudara de tal forma que a felicidade de outrora virou angústia e insegurança.
Família perfeita questionada
Gostos e interesses, atitudes e comportamento: tudo virou pelo avesso. Meu filho passou a ter opinião e vontade próprias; a escolher e fazer sozinho; a preferir a solidão e ter "seu espaço"; a disputar a última palavra, a ser o dono da razão, a criticar. Inesperadamente, um novo ser a desvendar surgia. De "diretora" do filme passei a dividir as cenas com meu filho temendo perder controle sobre minha 'obra'.
A princípio dona do roteiro, passei a ser submetida a contestações e enfrentamentos; a ser julgada por opiniões e criticada pelas decisões tomadas. Gradativamente, passei a viver o papel de vítima de minha própria obra, originalmente romântica. Subitamente, o previsto roteiro de família perfeita começou a sofrer revezes.
Tornar-me mãe de adolescente definitivamente pôs em xeque a continuidade daquele filme de sucesso. Seria mesmo possível crer em uma história como aquela?
O papel de mãe revisto
Vivi o enorme desafio de me manter conectada a um filho então adolescente. Mudara tanto e tão rapidamente que foi difícil até mesmo (re)conhece-lo. Às vezes angustiava-me pensar ter se tornado outra pessoa bem diferente daquele filho um dia "encantador". De posse do novo roteiro do que hoje reconheço como vida real, aprendi a dividir a cena, a dar a deixa, a conhecer o outro que surgia, a conviver com o diferente que despontava. Depois de muitos erros cometidos – na maioria das vezes por má comunicação ou próximo disso – vi quão despreparada e inexperiente era para conduzir a nova "temporada" daquele filme de família inesperadamente imperfeita.
Os diálogos passaram a ser pobres e as respostas do filho, miseravelmente monossilábicas: "Como foi a escola hoje, filho?", "Chata...". Mimos de mãe, impiedosamente desdenhados: "Fiz aquele prato que você adora!", anunciava animada. "Quem disse que gosto disso, mãe?", respondia sem cerimônia.
O filme da família perfeita ameaçado
Então aumentaram as rusgas, os grunhidos, as viradas de olho, as bufadas. Lembro quando comecei a me preocupar; depois a me ressentir e me irritar – não necessariamente nesta ordem – com sua reatividade a tudo. O filho, enfim adolescente, já não me pedia opinião, nem me consultava para nada. Parecia simplesmente me ignorar. Até o dia em que senti ter realmente perdido a conexão com ele: "Vamos ao cinema assistir aquele filme que você ama?", convidei certa de receber um "sim" em resposta. "Mãããe, aquele filme é de criança, né?!", respondeu irritado.
Ou quando entrei em seu quarto sugerindo um passeio com o pet disfarçando a intenção de tirá-lo do ostracismo e da solidão de seu quarto: "Filho, leve o Zac pra passear... ele, com certeza, tá sentindo sua falta...". "Pô, mãe! Dá pra bater na porta antes de entrar? Que saco!", esbravejou, "... e não, não quero sair. Tô ocupado aqui", completou rispidamente.
A "alergia" a pais começara e eu sequer entendia do tema. Parecia bastar minha presença para irritá-lo. Suas grosserias nutriam minha autocomiseração que, depois, deixavam mágoa. Tudo passou a me atingir como ataque pessoal. O filme perfeito, definitivamente, mudara de categoria e, a meu ver, estava fadado ao insucesso.
O roteiro revisitado
Quis mudar esta história. Para isso, investi em conhecimento sobre a fase. Como atores dedicados, fiz meu laboratório de mãe de adolescente estudando o filho e aprendendo sobre seus interesses, linguagem, estilo de vida e jeito de ser. A começar pelo que julgava ser causa de nosso mau relacionamento: a internet e tudo o que gira em torno dela, especialmente games, a maior razão de nossas desavenças.
Totalmente avessa ao mundo virtual que acreditava ter roubado meu filho de mim entrei humildemente em seu mundo digital disposta a, de fato, conhecê-lo e entendê-lo sem prejulgamentos. Conheci seus amigos virtuais de diferentes partes do mundo – a tal globalização; também jogos e suas dinâmicas.
Aprendi a inovadora forma dos campeonatos de e-sports que sequer ouvira falar e os quais meu filho não só jogava, como já fazia parte de equipe oficial. Apresentei-me a seus colegas e, a partir de então, passei a não só assistir as partidas como me tornei fã incondicional do time. Muito mais aconteceu e hoje, fã e apoiadora de filho atleta virtual profissional, sou outra também.
A vida me apresentou inesperado novo roteiro mas, passado o medo e o susto, me dispus a desvendá-lo e a encarar o desafio de continuar o filme de sucesso iniciado.
A obra perfeita da família imperfeita
Abrir a mente – e o coração – para o mundo desconhecido do meu adolescente me deu a chance de compreender e participar de sua vida de perto; enxergá-lo de uma lente diferente me permitiu vislumbrar novos caminhos de aperfeiçoamento pessoal e familiar; a sobretudo, manter-me conectada com ele para seguir realizando novos roteiros atualizados pelo mundo de hoje. Inevitavelmente, o filme inicial e idealizado ganhou novos atores, novo cenário, nova direção.
O filme diariamente reconfigurado com novas exigências me ensina que formar a família perfeita pode até ter começo, mas nunca um fim. Graças a esta e muitas outras idealizações desconstruídas, minhas chances de torná-lo melhor do que a versão inicial aumentam. Renovadas, finalmente, entendo: família é obra imperfeita que se aprimora a cada dia. Continuamente. Para sempre.
*Xila Damian é escritora, palestrante e criadora do blog Minha mãe é um saco!, espaço em que conta as situações cotidianas e comuns que vive sendo mãe de adolescentes, buscando desmistificar clichês sobre essa fase dos filhos, para transformá-la em um tempo de aprendizado.