O filósofo espanhol Juan Manuel Burgos esteve no Brasil na semana passada (9-12/06) para o lançamento de seu primeiro livro em português, Introdução ao personalismo, publicado pela Cultor de Livros. Fundador e presidente da Associação Espanhola de Personalismo e da Associação Iberoamericana de Personalismo, Burgos é o principal responsável por identificar os pontos característicos da filosofia personalista, que, com a sua atenção à dignidade da pessoa humana, à sua abertura à transcendência e à sua dimensão relacional, teve uma ampla influência na sociedade em meados do século XX.
A corrente influenciou, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversas constituições europeias e o Concílio Vaticano II. Entre os filósofos personalistas, estão nomes de relevo da filosofia do século XX como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Max Scheler, Edith Stein, Martin Buber, Emmanuel Lévinas e Karol Wojtyla, o papa João Paulo II. É Wojtyla, aliás, a especialidade de Burgos e o filósofo com quem mais se identifica.
A chamada teologia do corpo – as catequeses pronunciadas por João Paulo II entre 1979 e 1984 sobre o amor e a sexualidade – traz traços marcantes do personalismo, como entendido por Wojtyla em sua obra filosófica antes da eleição ao papado, que adentram no campo da bioética, da família e da complementaridade entre homem e mulher. Presente em Curitiba para um ciclo de conferências na Faculdade São Basílio Magno (FASBAM), Burgos conversou com o Sempre Família sobre o personalismo e a sua visão de temas ligados à vida e à família.
Sempre Família: O personalismo se distancia tanto do coletivismo totalitarista quanto do individualismo. Nesse ambiente de polarização, as contribuições do personalismo parecem especialmente relevantes.
Juan Manuel Burgos: O “problema” do personalismo é que ele está em uma posição central. Há o perigo de que pareça socialista a quem está mais à direita e que pareça conservador a quem é de esquerda. Os filósofos personalistas também passaram por isso e foram atacados por conservadores e progressistas, no sentido filosófico desses termos. Eu acredito que o personalismo é a posição mais adequada porque é a mais equilibrada. Não podemos postular um liberalismo extremo, que creio ser contra a pessoa, no sentido de: “Salve-se quem puder. Eu procuro salvar o que é meu e do resto não me preocupo”. E tampouco um socialismo exagerado, que ao fim acaba por controlar a pessoa, determinando o seu caminho. O personalismo procura um equilíbrio entre essas duas situações.
SF: Você se considera um representante do personalismo ontológico moderno, junto com Karol Wojtyla, e diferencia essa corrente do que chama de personalismo ontológico clássico. Como se dá essa distinção?
JMB: O que quero sublinhar com isso é que a posição de Wojtyla não é a de um tomista clássico. Ele é um renovador. Há tomistas que acreditaram ser possível renovar o tomismo com elementos personalistas. Isso resultava em um neotomismo personalista. Outros autores foram mais além, considerando que o tomismo é algo válido, mas em certo sentido superado como estrutura. Era necessário, então, fazer algo novo. Essa novidade é uma mescla de, acima de tudo, tomismo e fenomenologia, dando lugar a uma novidade – não como duas coisas simplesmente coladas uma à outra, mas como uma posição nova. Wojtyla foi um dos filósofos que procurou fazer isso. A sua solução é a minha preferida. É algo novo, que não é nem tomismo nem fenomenologia. O tomismo é uma filosofia muito interessante, mas é uma filosofia medieval. É uma filosofia construída no contexto da Idade Média. E desde então aconteceram algumas coisas mais. Então, é necessário fazer algo distinto.
SF: Um tema caro ao personalismo é a dualidade do ser humano, que existe como homem e como mulher. De que maneira é possível afirmar e defender esse princípio na sociedade de hoje?
JMB: Esse é um tema curioso, porque para mim a dualidade homem-mulher é um tema hiper-evidente. É tão óbvio que na vida do dia a dia não questionamos esse dado. Existe aqui, devido à pressão cultural, uma dissociação entre a vida real e o que parecemos pensar quando começamos a falar sobre esse tema. Na vida real, há uma existência absolutamente majoritária de relações entre homens e mulheres. O que sai disso é completamente minoritário. Mas há uma pressão muito forte para tentar normalizar uma situação que não vejo como normal. Uma coisa é que as pessoas tenham o direito de comportar-se como queiram em nível privado, porque somos livres e responsáveis para tomar as decisões que nos apeteçam. Outra é a pressão para que se normalizem outras situações, fazendo com que outros tipos de sexualidade sejam equivalentes à relação sexual entre homem e mulher. E isso é impossível. O fato é que há homens e mulheres, que a estrutura corporal masculina está ligada à feminina e que há uma compenetração desde o ponto de vista psicológico. Esses são os fatos. São possíveis outros tipos de situação? Sim, mas desde o ponto de vista dessa estrutura básica, são distorcidas. Essa estrutura, entendamos bem, não é totalmente fixa. A masculinidade e a feminilidade têm também uma dimensão cultural, ou seja, não são algo do tipo: ser homem (ou mulher) é exatamente isto e não pode se modificar. Há variações importantes. Mas o que não varia é a estrutura de ser homem e de ser mulher. Posto esse marco, a sociedade precisa ser aberta para permitir outros tipos de comportamento por parte de quem queira tê-los. Mas a tentativa atual, que chega até mesmo a propor leis para impedir que se tenha outro tipo de opinião sobre esse tema, é impositiva e alguns sentidos ditatorial.
JMB: Às vezes o que acontece é que os outros grupos simplesmente não estão dispostos ao diálogo. Existe um fechamento por parte desses grupos, que não querem que as ideias dos grupos pró-vida tenham peso. Outras vezes, o que acontece é que esses grupos pró-vida não têm uma formação teórica de traços modernos e acabam tentando defender princípios que são positivos, porém com instrumentos antiquados. Nos grupos pró-família, creio que falta também um pouco de conhecimento de sociologia da família, o que seria importante, porque lhes permitiria se mover com mais facilidade e compreender que a sua posição é demarcada no contexto da complexidade da estrutura familiar. A família, como a feminilidade e a masculinidade, tem uma dimensão cultural. É irreal, é falso considerar que não tenha. Quando se tenta estabelecer um diálogo a partir de uma posição de aculturalidade, a outra parte pode muito bem pensar: “Bem, aqui não há nada a dialogar, porque se parte de uma posição totalmente fixa que não corresponde à realidade”. A família evolui culturalmente. Se pensamos no que era a família há quarenta anos, vemos a diferença. A família é uma relação interpessoal que influi na sociedade e o modo como se dá a sociedade também influi na família. O que sustento é que essa evolução não pode ser total e que há tipos de famílias melhores do que outros. Nem todos os tipos dão no mesmo. As pesquisas no campo da psicologia demonstram isso claramente. A estabilidade, por exemplo, é boa para a família.
SF: Quais traços demarcariam aquilo que permanece na estrutura familiar ao longo de sua evolução?
JMB: A família – e isso também sustenta o antropólogo Claude Lévi-Strauss – tem um princípio de heterossexualidade. No fundo, família é como a sociedade gerencia a sexualidade e a procriação. Por isso, houve muitos tipos de família ao longo da história. Mas sempre com esses elementos: heterossexualidade e procriação. Do contrário, estaríamos falando de outra coisa. O que ocorre é que alguns desses tipos são melhores do que outros, porque respondem melhor ao que é a pessoa. Por exemplo, a poligamia é um tipo de família. Mas nesse tipo a mulher vale menos que o homem. A poligamia existiu em muitos países ao longo da história. Mas nem tudo que existe é bom só pelo fato de existir: é preciso avaliar o valor de cada coisa. No Ocidente, em parte devido à evolução da Grécia, de Roma e do cristianismo, desenvolvemos um tipo de família que é a união estável de um homem e uma mulher. Até mesmo estudos psicológicos mostram que esse é o melhor tipo de família. Por isso é necessário protegê-lo e defendê-lo, porque é o melhor para os filhos e para os pais.
SF: O personalismo também destaca a importância da dimensão corpórea da pessoa. Como você vê a questão da transgeneridade desde essa perspectiva?
JMB: A pessoa tem uma estrutura muito complexa. Essa estrutura idealmente tem unidade, mas o que ocorre é que a vida é complicada e então essa estrutura pode ser distorcida de várias maneiras: do ponto de vista físico, psíquico, corpóreo, afetivo, de sentido da vida. No caso dos transgêneros, o que acontece claramente é um caso de distorção. Afetivamente, a pessoa vive uma distorção interna entre a corporeidade e a identidade pessoal. É um problema complicado, talvez até mesmo sem solução. O personalismo postula que o corpo é parte da pessoa. Não é algo à minha disposição, como massa de modelar. O corpo sou eu. Não é algo que tenho e que, portanto, o modifico, o mudo e o conserto. É parte da minha identidade pessoal. O que chamamos de mudança de sexo não resolve a distorção. Não é tampouco inócuo enfrentar um tratamento hormonal e uma cirurgia. Há uma série de problemas relacionados com tudo isso. O que temos que fazer com as pessoas que se sentem assim é ajudá-las e tentar encontrar saídas, mas não é possível dizer que se trata de algo normal na pessoa humana. Não: é uma situação problemática que atinge algumas pessoas, mas o normal é que a identidade corporal coincida com a psíquica.
SF: O personalismo teve uma grande influência na sociedade em meados do século XX. Influenciou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversas constituições europeias e o Concílio Vaticano II. Com essa retomada do interesse pelo personalismo, é possível entrever uma nova onda de influência à frente?
JMB: Acredito que isso seja possível. De alguma maneira, com a queda das ideologias criou-se um vazio ideológico que faz com que seja mais fácil para o personalismo atuar. Percebo também que existe uma boa recepção ao personalismo que se amplia cada vez mais. De 2000 para cá, tem ressurgido com nova força. Há pouco tempo estive nos Estados Unidos em um congresso sobre o tema e agora no Brasil. Criei também a Associação Iberoamericana de Personalismo, que reúne associações nacionais de dez países. A Inglaterra também criou recentemente o British Personalist Forum. Se entendemos que o personalismo não se reduz a Mounier – sem tirar nada de sua importância – e o enxergamos como uma corrente da qual fazem parte muitos outros grandes pensadores, creio que o personalismo tem muito potencial e isso está sendo demonstrado pouco a pouco. Ele move-se mais no âmbito filosófico-cultural, mas creio que um passo importante é que tenha mais presença em nível social e político para poder dar a sua contribuição.
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