Cenas sensuais em novelas ou filmes, letras de músicas que usam termos pejorativos relacionados à sexualidade e ao ato sexual em si e, até mesmo brincadeiras aparentemente inocentes sobre os “namoradinhos” da criança. Infelizmente, todos esses conteúdos e situações estão mais perto do que imaginamos das nossas crianças. Muitas vezes estão na televisão da sala de casa, no rádio do carro, nas piadinhas de um tio ou mesmo naquela telinha que está bem ali, na palma da mão. Essa exposição prematura a esses e a outros estímulos é o que chamamos de erotização precoce e é fundamental que os pais estejam conscientes dos riscos que ela apresenta.
Antes de tudo, é preciso entender que a sexualidade é algo natural do desenvolvimento humano e faz parte também da infância. Para os pequenos, é através da curiosidade espontânea, do reconhecimento do próprio corpo e do diálogo aberto com os pais que esse desenvolvimento acontece de maneira saudável e natural. “A nossa sexualidade integra todo o nosso ser físico, biológico, mas também integra parte do reconhecimento de quem nós somos”, explica a bioeticista Daiane Priscila Simão-Silva, ressaltando a importância dessa esfera na vida de todo ser humano.
Por outro lado, existe um outro processo que não é natural da criança e que, diferentemente da sexualidade, acontece através de estímulos externos e incompatíveis com a estrutura da criança: a sexualização precoce. Essa ação pode ser entendida como uma adultização da criança, quando terceiros – pessoas próximas ou até mesmo os conteúdos de mídias acessíveis a ela – trazem conotação sexual para elementos do universo infantil ou então tornam elementos adultos e relacionados à sexualidade objetos de desejo para os pequenos, como roupas mais sensuais, por exemplo.
Vulnerabilidade
“A criança tem que passar por uma maturação do seu corpo, da sua mente, para entrar em contato com esses elementos no tempo devido porque se a nossa sexualidade tem a ver com a nossa própria criação de identidade, tudo isso pode deturpar a forma como a criança vai compreender a si mesma”, afirma Daiane.
A exposição a esses conteúdos impróprios, às vezes por falta de cuidado dos pais, ou mesmo por incentivo, estimulam a curiosidade da criança justamente porque ela ainda não compreende o que está vendo ou ouvindo. “Aquela cena erótica que está passando na televisão, os sons, as imagens, tudo isso chama a atenção da criança e desperta suas estruturas mnêmicas (relativas à memória) e intelectuais”, explica a especialista. “E essa curiosidade, essa tentativa de compreensão, vai passar pelo âmbito da brincadeira. A criança acaba dialogando com o que ela recebe e querendo replicar”.
E é aí que está um dos riscos mais graves da erotização precoce. Segundo a bioeticista, nesse processo de replicação, a criança passa a inserir aqueles gestos em suas brincadeiras, no seu cotidiano, e isso cria uma margem enorme para que a criança fique desprotegida quando surge uma pessoa mal-intencionada em relação a ela. “Ela não compreende que aquilo não faz parte do seu universo, que aquela ação não é adequada para a sua idade e, por isso, fica suscetível a sofrer violência ou abuso sexual por parte de pessoas que podem se aproximar com uma intenção desvirtuada”, alerta Daiane.
Valorização precoce
Para Mário Antônio Sanches, professor de bioética na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a erotização é claramente um elemento cultural. “É o modo como a cultura lida com a sexualidade. E podemos dizer que hoje vivemos numa sociedade onde a erotização está a flor da pele”, afirma. Segundo ele, meninos e meninas sempre prestaram atenção na sua própria sexualidade, só que de uma maneira normal. O problema é que, de repente, temos uma sociedade que valoriza demais isso. “Então, crianças que manifestam apelos eróticos muito cedo são vistas como mais adiantadas do que outras, ou mais interessantes. A valorização desse tipo de característica é uma valorização precoce”, explica Sanches.
“Isso fica bem claro, por exemplo, quando a gente vê uma menininha que diz que tem um namoradinho aos 5 anos, ela é valorizada por isso. Ou um menino que diz que tem três namoradinhas na escola, ele também é valorizado por isso”, observa o professor. Para ele, desconstruir essa valorização precoce é papel de todos, mas principalmente dos pais. “Se o pai fala: ‘não filho, na verdade você tem três amiguinhas, é bom ter muitas amigas, não precisa se preocupar com isso!’, isso desestimula essa erotização e dá ênfase na amizade e em outros elementos”.
Acontece que a raiz desse tipo de comportamento pode estar mais próxima dos pequenos do que se imagina: os próprios pais, ou melhor, a insegurança dos pais. “Ao meu ver, esse é o maior problema. Os pais são inseguros, têm medo de que seu filho ou filha seja alguma criança não normal e aí supervaloriza a criança porque ela faz as coisas precocemente”, afirma Sanches, lembrando que é possível observar isso naqueles comentários comuns acerca dos processos de desenvolvimento da criança: “ah, meu filho andou super cedo, com 9 meses!” ou então “com 1 aninho já estava falando”. “Eu sempre brinco que quem anda aos 9 meses não anda mais do que os outros. Então, não passa de uma insegurança dos pais, eles transferem para os filhos suas próprias frustrações”.
Observação e diálogo familiar
O ideal seria que os pais fossem os primeiros críticos dessa valorização e entendessem que a observação e o diálogo podem ser seus maiores aliados na construção de uma sexualidade saudável dos filhos. “É muito difícil a gente dizer qual a idade certa para as coisas. Não somos máquina, não somos robôs que funcionam do mesmo jeito”, explica o professor. “Por isso, existe uma necessidade de os pais estarem sempre atentos, não reprimirem excessivamente, mas também não estimularem excessivamente. Deixar as crianças se desenvolverem no seu próprio ritmo”.
“A forma como os pais compreendem a sexualidade e estão conduzindo essa criança num processo de amadurecimento saudável é o que vai criar as estruturas psicológicas necessárias para a criança viver bem seus relacionamentos futuros”, observa Daiane. “É isso que vai interferir numa forma mais natural de ver o sexo, sem esses aspectos que acabam trazendo um olhar pejorativo e de constrangimento”.
Sabemos que com o atual ritmo de vida das famílias, está cada vez mais difícil para os pais conseguirem administrar os conteúdos que as crianças têm acesso, seja televisivo ou principalmente na internet, onde essas imagens são ofertadas para as crianças enquanto elas estão assistindo um desenho ou jogando algo. Nesse sentido, a cobrança por dedicar um tempo de qualidade para os filhos pode até parecer exigente demais para muitos pais, mas é justamente esse tempo que vai permitir a criação desse espaço de diálogo. “Os pais precisam entender que faz parte da sua missão dar esse suporte e essa estrutura na infância porque isso vai de fato ser importante para a formação e para o futuro dos filhos”, explica a bioeticista. Por isso, de acordo com Daiane, os seguintes cuidados são fundamentais:
- Cuidado com a TV ligada, tablets e celulares. Só deixe a televisão ligada e esses eletrônicos à disposição se você estiver próximo para poder monitorar. Explique que existem conteúdos que são para crianças e outros não. Mas tome cuidado para não estimular ainda mais a curiosidade de seu pequeno, por isso, fale sem parecer que é um segredo;
- Explique e converse com seu filho quando você perceber que ele teve uma determinada curiosidade em relação a esses assuntos;
- Tenha conversas frequentes sobre todos os tipos de assuntos para que seu filho sinta que pode confiar em você para tirar qualquer dúvida. A própria vivência dos pais e o diálogo aberto sobre a sexualidade podem evitar a antecipação de etapas;
- Fale da importância do cuidado e da proteção com as regiões íntimas. Explique que elas são tão importantes que temos até roupas especiais para elas, como a calcinha e a cueca. Deixe claro que absolutamente ninguém pode tocar nelas;
- Evite estímulos como roupas próprias para adultos. Roupa de criança é roupa confortável, sem decotes e acessórios próprios desse processo de sexualidade do adulto. Deixar a criança com uma identidade infantil vai ajudá-la a compreender seu próprio processo de desenvolvimento de uma maneira saudável, sem que queira o tempo todo adentrar no universo adulto.
Sinais de alerta
Pode ser que alguns pais já tenham percebido comportamentos atípicos de seus filhos e estejam inseguros em relação aos conteúdos ou situações que a criança já pode ter vivido. De acordo com a bioeticista, às vezes é preciso uma percepção mais profissional para entender o que está se passando no imaginário daquela criança ou daquele adolescente. A base deve ser sempre o diálogo com os pais, mas alguns comportamentos podem ser sinais de alerta de que está na hora de procurar ajuda:
- Timidez excessiva. A criança pode querer ficar mais reclusa. Às vezes, ela teve contato com conteúdos apresentados por colegas na escola ou mesmo foi abordada por alguém. Nesses casos, é importante olhar o celular da criança, os pais têm não só esse direito, mas esse dever;
- Distanciamento quando os pais vão demonstrar afeto próprios da relação pais e filhos. Dependendo do tipo de contato que a criança teve, demonstrações de afeto podem ser levadas para o lado da erotização e isso traz certo constrangimento para a criança. Em alguns casos, esse contato pode criar uma repulsa em vez de gerar curiosidade.