Sophia sempre passeava com os avós, visitava as amigas e já estava acostumada a dormir sozinha, com todas as luzes do quarto apagadas. No entanto, assim que completou nove anos de idade, começou a arrumar desculpas para não sair de casa, fazia o possível para ficar perto dos pais e passou a ter medo do escuro. “Aí deixávamos a porta do quarto dela aberta e o abajur ligado, mas nossa filha pedia para dormir conosco mesmo assim”, relata a mãe Katinin Ceccon Martins, de 34 anos.
Atuante na área da educação e acostumada a lidar com casos de violência infantil, logo passou pela sua cabeça a terrível possibilidade de que alguém tivesse machucado sua filha de alguma forma. No entanto, para seu alívio, a menina estava apenas atravessando uma fase comum para toda criança – a Crise dos 9 Anos, conhecida também como Rubicão. “Aí fiquei com bastante dó porque entendi que ela havia começado a perder sua infância”, relata.
"Fiquei com bastante dó porque entendi que ela havia começado a perder sua infância”.
Ainda que o termo não seja tão conhecido, a psicóloga Lidiane Almeida explica que esse momento de transição afeta todos os meninos e meninas em algum momento entre 8 e 12 anos, mas se apresenta de maneiras diferentes, de acordo com as experiências vivenciadas individualmente. “Principalmente diante de situações extremas, como a separação dos pais, acidentes graves, bullying ou calamidades naturais”, explica a especialista em Terapia Cognitiva Comportamental para Crianças e Adolescentes.
No caso da pequena Sophia, por exemplo, a morte da avó depois de vários meses lutando contra um câncer foi o fator desencadeante da crise. “Elas eram muito ligadas, então minha filha acompanhou todo o processo de quimioterapia e, após o enterro, acabou se dando conta de que também poderia perder o pai e a mãe”, conta Katinin. “Acho que era por isso que ela não queria mais ficar longe da gente, passou a ficar medrosa e tentava aproveitar o maior tempo possível em casa”, recorda.
E é exatamente isso que acontece nesta fase. De acordo com Lidiane, o momento de mudanças corporais, hormonais e emocionais dos filhos faz com que percebam a finitude da vida, vejam que seus pais não são heróis que viverão para sempre e que as perdas e situações extremas existem. “A criança pode, inclusive, apresentar emoções como o medo e também um comportamento de ‘precisar’ estar mais próxima de seus pais”, explica a psicóloga.
Além disso, há casos em que os pequenos desenvolvem ansiedade extrema e apresentam sintomas como inquietação, dificuldade para dormir e para focar em uma coisa de cada vez. “Também há crianças que passam a roer unhas, a fazer xixi na cama, algumas ficam mais agressivas ou choram facilmente”, enumera a especialista, que acompanha, inclusive, mudanças na saúde de algumas crianças. Então, se os pais perceberem que o filho “está pronto para ir à aula, mas tem uma ‘dor de barriga’, febre, ou que alguém da escola liga mais de uma vez na semana porque a criança não está se sentindo bem, fique atento”.
“Há crianças que passam a roer unhas, fazer xixi na cama, ficam mais agressivas ou choram facilmente”.
Na maioria dos casos, segundo ela, não é necessário acompanhamento profissional e basta que os pais e professores tenham paciência para acolher os pequenos, sem julgá-los. Assim, “facilitarão o doloroso processo que é deixar de ser criança e ajudarão os filhos a assumirem algumas responsabilidades e entenderem as leis da vida, como a morte”.
Inicialmente, pode parecer muito difícil viver esse “luto da infância”, mas o próprio nome “Rubicão” mostra que é possível vencer essa fase do processo de crescimento, assim como Júlio César atravessou o rio com este nome no ano 49 a.C., enfrentou uma grave crise política e fundou o império romano mais tarde.
“Da mesma forma, esse momento prepara nossos filhos para os grandes feitos da vida e é um importante momento para ajudá-los a desenvolver a coragem”, afirma Lidiane. “Mesmo que seja apenas a coragem de dormir sozinho a noite inteira”.