Em tempos de Baleia Azul e do seriado da Netflix 13 Reasons Why, não é incomum se deparar com discussões sobre o suicídio de adolescentes em que a religião acaba entrando no assunto. Muitos a veem como um fator de prevenção, ao passo que é preciso também ter cuidado para não subestimar um problema psicológico sério, achando que a prática religiosa bastaria para solucioná-lo. Mas a vivência de uma religião pode, de fato, afastar um jovem de tendências suicidas?
“Sim e não”, responde ao Sempre Família o teólogo Alex Villas Boas, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ele recorre ao psicólogo austríaco Viktor Frankl, que criou a logoterapia a partir de sua experiência como prisioneiro em cinco campos de concentração durante a II Guerra Mundial. “No campo de concentração pessoas de todas as classes sociais, de diversos credos e com diferentes níveis de cultura chegavam ao suicídio. Contudo, Frankl via que alguns grupos tinham mais condições de resiliência: os artistas, poetas, intelectuais e pessoas que tinham alguma fé”, conta Villas Boas.
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“Isso se dava não por serem mais letrados ou religiosos, mas porque a sua cultura e a sua religião eram utilizadas para refletir sobre questões profundamente existenciais, como o sofrimento, a dor, a frustração, a injustiça, a esperança e o sentido da vida, e assim conseguir crescer interiormente com aquela situação”, explica o teólogo.
Existem, porém, formas de abordar a religião que não contribuem para alcançar uma compreensão mais profunda do sentido da própria existência. “Uma experiência equivocada de religião, que sirva de anestésico da consciência, atribuindo tudo o que acontece na vida a Deus, não permite, ou ao menos dificulta muito, compreender de modo responsável as causas complexas que promovem o sofrimento”, afirma Villas Boas.
Adolescência e busca de identidade
É justamente na adolescência que se intensifica a procura por algo que confira um sentido à própria existência. “Nesse período, o jovem inicia um processo de diferenciação em relação aos pais, elegendo de modo mais autônomo valores e objetivos que irão nortear sua própria vida”, explica o psicólogo Luís Henrique Michel. “Nessa transição, às vezes se experimenta um ‘esvaziamento de sentido’: aquilo que anteriormente tinha valor deixa de ter, antes mesmo que se possam encontrar novos sentidos ou eleger novos caminhos para trilhar”, diz ele.
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É aí que uma confissão religiosa pode oferecer elementos que ajudem a encontrar um norte. “A religião pode ocupar esse espaço na existência de alguns, fortalecendo o vínculo com a vida, auxiliando-os na tarefa – às vezes muito difícil – de atribuir novos sentidos ao mundo que é vivido por eles”, esclarece Michel.
O psicólogo também alerta para certas formas de religião – independentemente da confissão religiosa – que podem agir no sentido contrário. “O apego intenso a determinada doutrina moral, por exemplo, pode dar a impressão de que existe uma espécie de manual no qual é possível se apoiar para responder qualquer pergunta. Isso passa a ser preocupante na medida em que esse manual não contemple a possibilidade de acolher determinadas características dessa pessoa, enrijecendo seu modo de ser, pensar e agir”, explica.
“Certamente, nesses casos, a prática religiosa será vivida com um sofrimento psíquico significativo – o que em última instância pode motivar um suicídio, ainda que não seja adequado falar em uma relação de ‘causa e efeito’”, afirma o psicólogo.
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Para a psicóloga Judith Coelho Dipp, a espiritualidade é uma dimensão estruturante da vida humana que precisa ser trabalhada desde a infância. “A criança que cresce em sua dimensão espiritual, através de uma religião, de uma crença ou da fé em algo que a transcende, certamente terá uma vida mais repleta de sentido e mais consistente, o que pode lhe dar subsídios para enfrentar as crises de identidade e os vazios existenciais peculiares da adolescência”, diz ela.
“Adolescentes são essencialmente carentes de informação, de formação e de elementos que os ajudem a compreender quem são e qual a razão e o sentido de sua existência. Bombardeados de informações por todos os lados, acabam sendo presas fáceis para todo tipo de sedução filosófica, psicológica e mesmo religiosa. Por isso precisam ser muito bem orientados e amparados, sobretudo dentro de casa”, alerta a psicóloga.
Cristianismo e esperança
O padre Waldir Zanon Jr., assessor do Setor Juventude da Arquidiocese de Curitiba, conta que já lidou com casos de jovens que conseguiram superar tendências suicidas a partir da fé: “Já atendi jovens que pensaram no suicídio, que narram isso até mesmo em confissões. Com a experiência da fé, eles conseguiram realcançar o sentido da sua vida a partir da esperança de superar o problema pelo qual estão passando”, conta ele.
“No cristianismo, a experiência de fé vem junto com a esperança. Um Deus que é amor e que morre por nós nos leva a ter esperança neste mesmo Deus”, explica o padre. “A entrega de Cristo por nós nos faz ver que a vida é um dom precioso, a ponto de Deus mandar o seu Filho ao mundo como vítima pascal a fim de nos salvar”, diz.
É também a opinião de Matheus Machiaveli, responsável pelo trabalho com adolescentes na Igreja Batista do Bacacheri, em Curitiba. “Cristo nos mostra que somos amados e que, mesmo que no momento não estejamos aparentemente completos e inseridos em um meio cercado de bondade, podemos ter uma vida que reflita a vida, e não a morte”, diz ele.
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“Eu mesmo tive a oportunidade de acompanhar um rapaz de 22 anos, estudante, com amigos e uma vida social ativa. Seu problema estava em lidar com a separação dos pais e a falta de cuidado por parte da mãe, com quem morava. Isso gerava em sua vida uma sensação de total abandono e desprezo, o que, cumulado com a falta de emprego e desilusões amorosas, fazia dele um potencial suicida”, conta Machiaveli, que interveio no momento em que o rapaz tentava cortar os próprios pulsos.
“Após diversas conversas e através de um relacionamento intencional com o Criador, seu comportamento começou a se transformar, sua raiva e ira foram substituídas por amor e cuidado, sua impaciência e autodestruição por amor próprio e domínio próprio”, relata Machiaveli.
Psicologia ou religião?
É claro que a religião não deve ser vista como uma substituta do acompanhamento psicológico, o que pode acarretar consequências graves quando se trata de um sofrimento psíquico sério. Isso não significa que psicologia e religião não se relacionem. Para Michel, “ambas podem se complementar na busca de uma pessoa por autoconhecimento, por mudanças em seu modo de ser ou no enfrentamento de um momento de dificuldade”.
É também o que pensa Villas Boas. “Uma experiência autêntica da religião, enquanto experiência humanizadora, pode ter um efeito terapêutico positivo. Do mesmo modo, uma autêntica experiência de terapia pode ter um efeito religioso positivo, enquanto ajuda a ter uma visão mais equilibrada da condição humana, sem transferir responsabilidades para Deus”, diz o teólogo.
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