Rosana Felix, Gazeta do Povo
Afeto, troca, cumplicidade. Sutilezas desse tipo fazem parte dos kits infantis que são entregues em todo o Brasil por clubes de leitura, um mercado em expansão que está passando ao largo da crise de editoras e grandes livrarias. Além do livro físico, o pacote que chega mensalmente na casa do pequeno leitor costuma ter folhetos com dicas para acompanhar a obra e algum mimo, objetos que incrementam a experiência e ajudam a disseminação da prática da leitura desde cedo.
Dependendo do plano escolhido, o assinante recebe um ou mais livros, selecionados por equipes especializadas na leitura infantil. Ainda que as sutilezas embutidas nos kits não sejam visíveis a todos os assinantes, elas fazem parte do trabalho de curadoria feito pelos clubes – os quais acreditam na importância do livro físico, em um mundo cada vez mais digital.
“O que mais forma leitor é o afeto. Se a gente sabe disso, precisamos fazer com que a literatura chegue às famílias, fazer com que ela seja tratada não como obrigação, mas como prazer, afeto, troca”, diz Renata Nakano, idealizadora do Clube Quindim junto com o sócio Volnei Canonica. O objetivo principal, diz ela, é ajudar na garimpagem de obras de qualidade. “Vivemos em um país em que a educação ainda é muito delegada às mães, que costuma fazer dupla ou até tripla jornada. É muito trabalhoso para elas irem atrás de livros de qualidade, seria muito injusto exigir isso. Tentamos abraçar as famílias com essa curadoria”, explica.
Um objetivo dos clubes é oferecer obras que muitas vezes não estão disponíveis nem nas livrarias das grandes cidades. “A criança às vezes passa quatro, cinco horas em frente à televisão. Quando os pais a levam na livraria, ela vai reconhecer os personagens da telinha e se render a eles, mas muitas vezes são livros que não estimulam o pensamento, e temos toda uma produção incrível para conhecer”, completa Renata.
Essa produção é tão vasta que o livro infantil é descrito pelos especialistas na área como obra de arte – e por isso o contato físico com ele é fundamental. “O livro é a primeira galeria de arte dessas crianças. Por isso o formato livro é muito importante. Há obras em que a costura das páginas faz parte da história. Há recortes variados, tipos de papel diferentes”, opina Denise Guilherme, fundadora do clube A Taba. Ela explica que as obras digitais até oferecem recursos de proximidade, como virar a página, mas a estrutura de navegação é pensada para não se permanecer no mesmo lugar. “Com o livro físico, não dá para fazer outra coisa ao mesmo tempo, é preciso dedicação”, observa.
Segundo Cynthia Spaggiari, coordenadora de curadoria e conteúdo offline na PlayKids, empresa que administra o clube Leiturinha, a regularidade de entrega dos kits na casa do pequeno leitor faz com que a criança inclua em sua rotina o hábito da leitura. Outra vantagem dos clubes é que eles oferecem o serviço em todo o território nacional. O Leiturinha, o maior deles, contabiliza cerca de 150 mil assinantes em 5.100 municípios. Mas tanto o Quindim como A Taba, com estruturas menores, realizam entregas em praticamente todos os estados.
Por essas e outras iniciativas do tipo são comemoradas por quem milita na área. “Vemos com muito bons olhos o trabalho que os clubes estão fazendo”, diz Elizabeth D’Angelo Serra, secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). “A disponibilidade do adulto de compartilhar o momento com a criança é muito importante. A voz contada estabelece uma relação entre eles, que é fundamental na formação dos indivíduos, e os clubes têm contribuído para essa proximidade”, comemora.
A leitura de boas obras também contribui com a educação formal, destaca Elizabeth, mas o livro infantil tem papel fundamental na formação humanista. “Quando pensamos na realidade do país, em que nem todas as cidades possuem bibliotecas, é muito interessante proporcionar a entrega de livro de qualidade. Essa oferta não existia antes, e podemos reparar na lacuna que isso deixou mesmo em professores”.
Os clubes costumam oferecer pacotes com um livro ou mais, e de acordo com a faixa etária da criança, desde bebês. Denise defende a divisão de acordo com o perfil do pequeno leitor. “Uma criança de 5 anos de Curitiba talvez tenha um repertório diferente de uma criança de 5 anos do interior do Piauí. Então, é preciso levar em conta a experiência individual”, observa. As obras também são acompanhadas de folhetos com sugestões de abordagem e questionamentos sobre as obras. Muitas vezes, diz Denise, são feitas algumas provocações que deixam até mesmo os adultos inquietos. “Para a gente, um bom livro para criança é um bom livro para o adulto também”, diz.
Nos últimos anos, surgiram outros clubes infantis que já fecharam as portas – seguindo os passos das grandes livrarias, atingidas por problemas de gestão e também pela crise econômica. Em 2018, o número de exemplares produzidos caiu 11% em relação ao ano anterior, segundo a pesquisa anual da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) para a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). Mas tanto o Leiturinha como A Taba e Quindim trabalham com a expansão da carteira de assinantes.
Outras ações
Para auxiliar os adultos, os clubes oferecem conteúdo impresso e digital sobre a leitura e temas relacionados à infância e à família. Mesmo quem não assina os kits tem acesso às dicas de mediação e de livros interessantes. Há possibilidade de pacotes para escolas e formação de bibliotecas. Além disso, as empresas dos clubes atuam também na parte social. O Instituto de Leitura Quindim, por exemplo, com sede em Caxias do Sul (RS), tem acervo aberto ao público e funciona de forma virtual também para contribuir na disseminação da leitura e na construção de políticas públicas para a área. O Amigos da Leiturinha recebe doações de livros, faz a curadoria e distribuição para entidades.
Eva, “leitora” desde os 3 meses
Os clubes de leitura infantil oferecem kits que atendem desde bebês até pré-adolescentes. O casal de veterinários João Paulo Pereira Amadio e Mariana Carnevalle Amadio aderiu à assinatura para a filha Eva quando ela tinha cerca de três meses. Hoje, aos 2 anos e 7 meses, a menina já incorporou os livros na rotina de brincadeiras. “Não estipulei horário, ela vai pegando e repetindo sons e falas de quando lemos. Desde bebê vemos a memória agindo, ela repetindo coisas que tinha escutado”, diz Mariana.
Durante a gestação, Mariana comprou alguns livros infantis, mas se interessou pela assinatura do kit Leiturinha para receber obras diferentes e voltadas para a faixa etária da filha. “Na livraria, muitas vezes, a gente acaba sendo induzida pela prateleira. Nem sempre aquilo que se compra é adequado para seu filho. E temos nossas preferências pessoais. Acabamos indo para aquilo que gostávamos quando crianças, os livros de sempre, ou alguns com estereótipos. Quando recebemos, nem sabemos o que vem, e ampliamos nosso leque”, relata.
Desde os 6 meses, quando o pacote chega em casa, Eva reconhece que é para ela e faz a festa, conta a mãe. Por causa de mudança de residência, Mariana suspendeu temporariamente a assinatura, mas diz que já ficou com saudades de receber o kit.
Conheça três dos clubes de leitura infantil que atendem todo o Brasil:
Leiturinha
Criado em 2014, após uma conversa sobre paternidade entre três amigos engenheiros, e adquirido em 2016 pela PlayKids. “Com formação em diferentes áreas (pedagogia, psicologia, comunicação, filosofia), experiência com a maternidade e o amor pela literatura, a equipe analisa e seleciona, com olhar atento e cuidadoso, obras não só do Brasil, mas do mundo todo, com o objetivo de entregar às famílias o que há de melhor em literatura infantil. Os livros são selecionados de acordo com seis categorias de leitura diferentes, levando em conta cada etapa do desenvolvimento infantil: leitores de berço, leitores brincantes, pré-leitores, leitores iniciantes, leitores em processo e leitores fluentes”, diz Cynthia Spaggiari, coordenadora de curadoria e conteúdo offline na PlayKids.
A Taba
Criado em 2016 pela mestre em Educação e formadora de leitores Denise Guilherme. “Nosso kit é pensando como experiência para família. Não é entretenimento, é conexão, presença, partilha entre o adulto e a criança”. Meu trabalho é acompanhar em feiras, livrarias e bibliotecas toda a produção, para poder dizer quais experiências de leitura podem trazer mais repertório ao leitor. Nosso critério é a qualidade, temos curadoria independente, sem parceria com editoras ou escritores. Tanto que quando acabam as temporadas de premiações, pelo menos 60% dos livros foram selecionados pela A Taba”, diz Denise. Os planos são para bebê, leitor iniciante, leitor autônomo e leitor experiente.
Quindim
Criado no fim de 2016 por Volnei Canonica e Renata Nakano, ela mestre em literatura e editora. O nome é uma homenagem a Monteiro Lobato, que criou o rinoceronte Quindim, e também faz referência ao doce preferido de Mário Quintana. Autores e ilustradores famosos da área infantil participam da equipe de seleção de obras, entre eles Ana Maria Machado, Ziraldo, Marina Colasanti, Marisa Lajolo e Roger Mello. “Buscamos um modelo de negócio sustentável e independente, com foco na disseminação da leitura infantil, e não no lucro. Pedimos aos curadores para tentar privilegiar autores brasileiros, para a criança reconhecer a si e a sua cultura nos livros, afinal já há muito desenho e filme estrangeiro por aí. Mas buscamos o melhor da literatura estrangeira também”, afirma Renata.
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