“Depósito”: o modo como uma casa de repouso para idosos é chamada em um novo livro de ficção pretende denunciar as incongruências de nossa relação com a velhice e com os idosos ao nosso redor. Em Jasmins, publicado pela editora Maralto, Claudia Nina retrata a dura relação entra a cuidadora Yasmin e a idosa Wanda, num momento da história em que o fenômeno da longevidade interpela a nossa atenção à população idosa.
Segundo dados do Ministério da Saúde, a quantidade de idosos no Brasil ultrapassará, em 2030, o total de crianças entre 0 e 14 anos. A expectativa de vida no país, que em 2000 era de 69,8 anos, hoje é de 76,8. Com isso, o problema do desamparo e dos maus-tratos na velhice ganha corpo e a omissão das políticas públicas e da sociedade civil se torna mais gritante.
“Embora não seja regra, alguns fatores tornam os idosos mais vulneráveis e dependentes de outras pessoas, seja para a realização de atividades básicas da vida diária, econômica ou emocionalmente, principalmente aqueles com déficits cognitivos ou limitações naturais do próprio envelhecimento”, explica a psicóloga Allana Moraes. “Por essas razões, lamentavelmente, o idoso também se encontra mais suscetível a ser vítima de violências nos mais variados âmbitos, seja familiar, institucional ou social”.
Claudia envolveu-se com o tema do desamparo na velhice e com os seus aspectos de crueldade e revolta sobretudo com a leitura de A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe. “Eu precisava tocar em um assunto desconfortável de uma forma desconfortável, sem verniz. Por coincidência, na época eu observava um caso de alguém próximo envolvido nesse ambiente de clínica para idosos. Os personagens ganharam vida, voz e movimento a partir daí”, conta a autora.
Um novo cenário
De acordo com Allana, é o próprio ambiente familiar que tem se apresentado como o espaço de maior incidência de abandono e maus-tratos acometidos contra o idoso, com episódios de violência psicológica, física, moral e patrimonial perpetrados por filhos ou cônjuges. Diversos fatores desempenham um papel nesse tipo de cenário, como o maior acesso a armas de fogo e a outros tipos de arma, o consumo excessivo de álcool e o que pode ser chamado de transmissão transgeracional da violência e do abandono.
“O fato de os idosos se transformarem em vítimas na velhice também se relaciona à violência ou abandono por eles perpetrados no passado, assim como terem apresentado comportamentos disruptivos, agressividade e atitudes provocativas em relação aos familiares”, explica a psicóloga. “Portanto, para analisar os motivos que levam um familiar a agir com violência em relação a um idoso, há que se levar em conta não só características dos idosos ou da família, já que se trata de um fenômeno multideterminado e que deve ser analisado em sua complexidade”.
Entre os fatores em jogo, há também aquilo que o gerontólogo Robert N. Butler chamou já em 1969 de “ageísmo” ou “idadismo”, ou seja, a discriminação contra pessoas com base em sua idade, mais comumente direcionada a pessoas mais velhas. “Butler descreveu três aspectos deste tipo de preconceito: atitudes negativas em relação aos idosos, à velhice e ao processo de envelhecimento; práticas discriminatórias contra idosos; e práticas e políticas institucionais que perpetuam estereótipos e atitudes negativas sobre os idosos”, pontua Allana.
Segundo a psicóloga, trata-se de uma cultura anti-idade tão difundida que os próprios idosos não estão isentos de uma visão preconceituosa que deprecia a velhice e o processo de envelhecer. “O ageísmo está implícito quando faz parte de pensamentos e sentimentos subconscientes, deixando muitas vezes de ser reconhecido”, alerta Allana. “Um exemplo é quando casos de esquecimento em pessoas mais velhas são vistos como um possível resultado da doença de Alzheimer, desconsiderando todas as vezes que pessoas jovens esquecem coisas ao longo de sua trajetória cotidiana”.
Por tudo isso, o apoio ao contato intergeracional, que reduz as experiências de preconceito de idade, se torna ainda mais fundamental num cenário como o atual. “Nas gerações anteriores, os idosos eram frequentemente vistos como um grupo separado da população como um todo. Mas tudo isso está mudando com a longevidade crescente e as oportunidades e desafios que ela apresenta à nossa sociedade, abrindo um novo paradigma que consiste em olhar para o envelhecimento e para os idosos como parte integrante de toda a nossa sociedade”, diz a psicóloga.
Vínculos afetivos
A saúde dos vínculos afetivos entre o idoso e os seus cuidadores é um fator de proteção contra a violência muito significativo. “Quando falamos de cuidado, pensamos em três grandes pilares: a técnica, a intencionalidade e a afetividade. O cuidado é muito importante para que o idoso esteja inserido nas questões do dia a dia e se sinta integrante da dinâmica familiar e da própria comunidade”, aponta Clovis Cechinel, geriatra do Hospital Marcelino Champagnat.
“Sabe-se que ao envelhecer a autoridade dos pais diminui, seja pela independência dos filhos ou pela perda do poder econômico e da saúde. Por causa dessas questões, a relação pais-filhos se inverte e é a qualidade dos vínculos anteriores — a afeição e os sentimentos de dever filial — que assegura a retribuição de suporte e um relacionamento percebido como simétrico”, explica Allana. “Portanto, a manutenção de vínculos simétricos é uma das formas de preservar o poder na relação e de evitar os abusos relacionados à objetalização da pessoa idosa”.
Com as particularidades demográficas atuais, o agente desse cuidado é cada vez mais diversificado. Cechinel sublinha que, tendo as famílias cada vez menos filhos, não é raro ver idosos cuidando de outros idosos, como irmãos ou amigos. Além disso, existem as instituições que oferecem cuidados para o idoso durante o dia ou que o acolhem em sistemas de longa permanência. Para o geriatra, o preconceito em relação a essas instituições precisa ser rediscutido. “O grande momento de escolha é quando a rede de cuidado da família já não é adequada para atender todas as demandas de cuidado que o idoso necessita”, afirma ele.
Nesses contextos, também a atenção ao vínculo afetivo se torna um fator determinante contra os maus-tratos. “Todo profissional que trabalha com essas demandas precisa ter muito cuidado com a sua própria qualidade de vida e dos seus relacionamentos”, sublinha Allana. “Uma vida pautada em valores e autocuidado vai representar sempre os amortecedores contra eventos de estresse, possibilitando que o trabalho do cuidados seja mantido com respeito e ternura à pessoa que precisa dele”.
Com a atenção à saúde mental dos profissionais cuidadores e com a proximidade da família, essas instituições deixam de ser “depósitos”, como denuncia o livro de Claudia, e passam a se tornar pontos de apoio fundamentais em uma sociedade cada vez mais idosa. Essa humanização é a razão pela qual a autora escreve. “A literatura tem um poder de atuação em nossas mentes e almas muito mais amplo do que podemos supor. É uma forma de vacina contra a desumanização. O assunto dos idosos é apenas um entre tantos que pede por nossa sensibilidade”, finaliza ela.