Ajuda psicológica ou ajuda espiritual: o que é melhor? Essa pergunta, que ainda sustenta alguns debates, sequer deveria existir. A psicoterapia e o acompanhamento espiritual são realidades diferentes, cada uma com o seu próprio valor, que não precisam rivalizar uma com a outra.
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“As pessoas não deveriam ter que escolher entre o cuidado espiritual ou o psicológico. O que precisamos reconhecer é que em algumas situações um desses aspectos vai precisar de uma atenção maior da nossa parte”, diz a psicóloga e pesquisadora Adriana Patrícia Egg-Serra, mestra e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
“Essas duas dimensões se tocam numa dinâmica de complementaridade, não de sobreposição”, corrobora Matheus Cedric, coordenador do Observatório da Evangelização, organismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). “Uma pessoa que faz acompanhamento espiritual e acha que por causa disso pode prescindir da psicoterapia está ignorando uma dimensão importante da sua constituição como ser humano, o que pode ser muito prejudicial”, diz ele.
Mas o contrário também é verdadeiro. Patrícia ressalta que o aprofundamento por parte das ciências da saúde sobre o lugar da espiritualidade no processo terapêutico já vem de longa data. “É um campo de estudo bem estabelecido, mas ainda desconhecido para boa parte dos médicos, psicólogos e enfermeiros”, afirma a pesquisadora.
“As pesquisas têm demonstrado o quanto a espiritualidade e a religiosidade está associada a resultados positivos em saúde, bem como a resultados negativos. Justamente porque fazem bem ou mal, são fatores que devem ser levados em consideração pelos profissionais de saúde. Deveríamos minimamente saber lidar com isso, e o que vemos muitas vezes é um hiato”, comenta Patrícia. “A espiritualidade é uma dimensão como qualquer outra do ser humano, que precisa de atenção. É uma dimensão constituinte da subjetividade”.
Diferenciações importantes
A diferenciação entre relações de acompanhamento espiritual – ou direção espiritual, ou paternidade/maternidade espiritual – e processos psicoterapêuticos é significativa. Não há por que pensar que a psicoterapia seja uma espécie de acompanhamento espiritual secularizado, ou, ao contrário, que o acompanhamento espiritual seja uma psicoterapia confessional.
“O antagonismo entre ciência e religião é algo típico do século XIX, que já foi bastante derrubado, mas que de alguma forma ainda persiste”, afirma Patrícia. “A grande questão é desmistificar essa ideia e estabelecer um diálogo. A psicologia é uma coisa e a religião é outra”.
“A importância do acompanhamento espiritual, para quem vive uma experiência religiosa, é que se trata de um processo de discernimento à luz de uma tradição sapiencial, constituída ao longo da caminhada de um povo”, explica Cedric. “Eu me insiro numa comunidade, em seu modo específico de perceber a vida, a partir da sua sabedoria acumulada que se transmite como tradição através de alguém que caminha junto comigo, numa função mais fraterna do que profissional”.
“O processo terapêutico não passa por essa dimensão, mas parte de um olhar científico, podendo a partir de descobertas empíricas lançar luzes sobre alguns padrões de comportamento”, diz ele. “Por outro lado, precisamente por conta de sua dimensão fraterna e comunitária, o acompanhamento espiritual, quando bem feito, pode despertar um autoconhecimento e uma abertura ao outro muito mais profundos, no âmbito de uma sensibilidade sapiencial que não pertence ao âmbito da psicologia”.
Desarmar as armadilhas
Assim, na complementaridade entre os dois processos, muitas armadilhas podem ser desarmadas. Se a dimensão espiritual contribui para que a psicologia amplie o seu olhar e não se considere detentora do conhecimento do mecanismo pelo qual funcionamos, a psicoterapia pode ajudar a identificar desvios na experiência religiosa.
Mesmo do ponto de vista dos estudos das ciências da saúde, a diferença entre resultados bons e ruins da integração da espiritualidade no processo terapêutico se relaciona com experiências positivas ou negativas da religiosidade. Uma coisa é quando a espiritualidade é uma dimensão que oferece luz para direcionar a vida da pessoa; outra, quando se trata de práticas assumidas com vistas a um bem secundário, por razões de medo ou de culpa, por exemplo.
“Essa diferenciação aparece mais no contexto terapêutico do que no contexto religioso. São olhares que um terapeuta pode identificar”, destaca Patrícia. Além disso, a psicoterapia pode ajudar a reconhecer relações abusivas no processo de acompanhamento espiritual, que pode se prestar a processos sutis de manipulação da consciência.
“Um desafio muito grande no acompanhamento espiritual é a escolha desse acompanhante”, afirma Cedric. “Nem toda pessoa, mesmo que ocupe um posto na hierarquia de determinada religião, é qualificada para fazer esse processo. Há pessoas que se colocam nesse espaço fazendo dele não um processo saudável, mas um caminho de alienação profunda, causando inclusive muitos danos psicológicos, que depois terão de ser tratados na terapia”.