Vivenciamos milhares de eventos durante a infância e, ainda assim, como adultos, lembramos apenas de alguns. Alguns podem ser “primeiros” (nosso primeiro sorvete, nosso primeiro dia na escola) ou eventos significativos da vida (o nascimento de um irmão, a mudança de uma casa). Outros são surpreendentemente triviais.
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Então, o que suas primeiras lembranças de infância dizem sobre você? Elas refletem sua habilidade inicial de lembrar, seus interesses ou suas experiências individuais? Embora às vezes vejamos a memória como uma câmera de vídeo, registrando nossas vidas com precisão e sem preconceitos, isso é um mito. Em vez disso, nossas memórias de infância são fortemente moldadas por nossa família e cultura.
Nossas primeiras memórias
Se você não consegue se lembrar da vida como uma criança, você não está sozinho. Como adultos, olhando para a infância, não podemos nos lembrar de nada antes dos 3 ou 4 anos. Esse fenômeno é conhecido como amnésia infantil. E embora alguns indivíduos relatem memórias muito antigas de quando eram bebês, quando eram crianças, ou de terem caído no sono em um berço, essas memórias são provavelmente fictícias.
Um dos desenvolvimentos mais importantes para o início da memória é a linguagem. Pesquisas mostram que a linguagem é necessária não apenas para compartilhar nossas experiências, mas também para codificá-las. Por exemplo, crianças pequenas convidadas a usar uma “máquina mágica de encolhimento” fictícia só poderiam se lembrar disso um ano depois se tivessem o vocabulário apropriado na época do evento. Também sabemos que adultos bilíngues que imigraram quando crianças se lembram das primeiras lembranças na língua que falavam no momento em que a memória foi formada.
Além da linguagem, as crianças também devem desenvolver um senso coerente de si mesmas. Esse desenvolvimento emergente permite que elas fixem eventos em uma história pessoal contínua ao longo do tempo. A sensação de que “isso aconteceu” se desenvolve em uma compreensão mais profunda de que “isso aconteceu comigo”.
Fatores familiares
Enquanto o desenvolvimento da linguagem e do senso de identidade permitem que nossas primeiras lembranças da infância se formem, fatores familiares moldam seus conteúdos.
Nas famílias, os pais relembram com os filhos várias vezes ao dia – revivendo as férias em família, por exemplo, ou criando laços entre irmãos ou refletindo sobre transgressões passadas para discutir as lições aprendidas. Curiosamente, no entanto, existem fortes diferenças individuais na maneira como o fazem.
Alguns pais usam um estilo de construção de lembranças altamente "elaborativo": fazer perguntas e fornecer detalhes e estrutura do evento de uma forma que reforça e incentiva a própria contribuição da criança. Outros se concentram principalmente no conteúdo emocional (“Ela estava muito triste! Por que ela começou a chorar?”), mas há os que se utilizam mais de detalhes factuais.
Essas diferenças individuais têm implicações importantes, com os filhos acabando por adotar o estilo personalizado de seus pais: primeiro durante conversas compartilhadas de lembranças vagas e, mais tarde, em suas próprias memórias independentes.
Qual é o seu estilo?
Aqui está um exemplo de uma conversa altamente elaborada entre uma mãe e seu filho em idade pré-escolar.
Mãe: Você e o papai montaram a árvore de Natal e depois enfeitaram! Quais decorações você colocou?
Criança: Hum ... as bolas de Natal!
Mãe: Isso mesmo! Papai comprou bolas de Natal e estrelas para pendurar na árvore. De que cores eram elas?
Criança: Vermelho e dourado.
Mãe: Vermelho e dourado. Lindas bolas vermelhas e estrelas douradas.
Criança: E havia os círculos de papel também.
Em contraste, abaixo está uma conversa menos elaborada entre uma mãe e seu filho em idade pré-escolar.
Mãe: Como foi o concerto de Natal na pré-escola? Estava bom?
Criança: Sim
Mãe: O que aconteceu?
Criança: Papai veio
Mãe: Sim, mas o que aconteceu?
Criança: Eu não sei.
As estruturas e experiências familiares mais amplas também desempenham um papel. Na Itália, as crianças que crescem em lares intergeracionais tendem a ter mais memórias da infância do que as crianças que crescem em famílias nucleares tradicionais (composta apenas pelos pais e os filhos). Isso provavelmente ocorre devido a mais oportunidades de se envolver em conversas ricas e elaboradas de reminiscências.
Em contraste, pais e filhos com depressão podem apresentar tendência para “memória generalizada” – ou seja, dificuldade em relembrar detalhes específicos da memória.
Fatores culturais
Assim como nossas primeiras memórias de infância refletem nossas conversas rememorativas com nossos pais e nossas experiências familiares abrangentes, elas também parecem refletir práticas e normas culturais mais amplas.
Consistente com os valores "individualistas" da cultura ocidental, as primeiras memórias da infância dos estudantes universitários americanos, por exemplo, são tipicamente longas, específicas e autocentradas. Consistente com os valores "coletivistas" da cultura chinesa, as memórias da infância dos alunos chineses são normalmente breves e mais propensas a fazer referência às responsabilidades sociais.
As mães americanas também são mais propensas do que as chinesas a se concentrar nas experiências emocionais pessoais de seus filhos quando conversam com eles, e é provável que essas primeiras conversas entre pais e filhos sirvam como um mecanismo para transmitir normas culturais.
Na Nova Zelândia, onde a cultura maori inclui uma rica tradição oral na qual as histórias são compartilhadas através das gerações, descobriu-se que as mães maori relembram de forma muito particular os eventos importantes da vida. Ao falar com seus filhos sobre suas próprias histórias de nascimento, por exemplo, elas incluem detalhes mais relacionados à emoção. Curiosamente, o povo da cultura maori também tem a idade média mais precoce de primeira memória registrada: aos 2 anos e meio.
Portanto, a pesquisa é clara: nossas primeiras memórias de infância são diretamente influenciadas por nossas experiências dentro de nossas próprias famílias e culturas e em nada se parecem com um filme.
*Penny Van Bergen é professora sênior de Psicologia Educacional na Universidade Macquarie
**Amy Bird é professora de Psicologia Clínica na Universidade de Wollongong
***Rebecca Andrews é professora de Primeira Infância na Universidade Macquarie
©2021 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.