Não é difícil ter ouvido falar – ou mesmo ter passado pela experiência – de algum casal que terminou o relacionamento por algo aparentemente banal. Ao mesmo tempo, não são raros os casais que se mantêm juntos mesmo quando um dos dois manifesta alguma forma de comportamento tóxico. Como saber onde está a linha que separa o tolerável do intolerável em um relacionamento de casal?
Para o psicólogo Matheus Vieira, a chave é que cada pessoa, antes de se compreender como casal, entenda o que é essencial para si mesma enquanto sujeito. Percebemos isso quando vemos que ficamos sem ânimo ou nos sentimos feridos quando determinada questão não é atendida. “Cada pessoa tem o seu espaço daquilo que é essencial para ela. Umas pessoas exigem mais, outras menos. Tanto faz, desde que aquilo seja percebido por ela realmente como necessário”, explica Vieira.
Essa esfera do essencial, então, se diferencia da esfera do desejável. Por exemplo, alguém pode achar bom que o seu parceiro não fume, mas está disposto a abrir mão dessa exigência e tolerar esse hábito se for o caso. Feita essa distinção, a orientação fica clara: “Não deveriam ser tolerados os comportamentos que ferem a esfera do essencial, porque se a pessoa perde o que considera essencial para ela, perde a sua identidade”, sublinha o psicólogo.
Do outro lado, quando um comportamento está apenas na esfera do desejável e se está disposto a apostar no relacionamento, não há por que não ceder. “Talvez ‘concessão’ seja a palavra principal no que diz respeito ao que o casal pode acordar em relação ao funcionamento da relação, da casa e da família: ceder, fazer concessões, ajustar. Quando isso é possível, há a compreensão de como respeitá-las”, avalia a psicóloga Mariana Pieruccini.
Relacionamento tóxico
Quando se invade a esfera do que cada um considera essencial, o relacionamento começa a apresentar sinais de toxicidade, podendo até mesmo se configurar como um relacionamento abusivo em alguns casos. “Imagine que eu esteja numa relação em que aquilo que eu considero essencial na minha vida, aquilo que configura a minha identidade, começa a ser invadido. Como eu percebo isso? Quando a outra pessoa invalida as minhas escolhas, como se aquilo que eu escolhesse não fosse certo”, orienta Vieira.
Isso pode acontecer, por exemplo, quando você decide fazer determinada atividade no fim de semana, mas o seu parceiro o convence de que aquilo não é legal ou de que é errado, ou quando ele passa a controlar o que você veste ou a exigir que você corte algumas pessoas do seu círculo de amizades. “Esse processo não é abrupto. É muito sutil, muito sedutor. A pessoa abusiva sabe conduzir isso dessa maneira, fazendo com que a outra pessoa acabe cedendo naquilo que considera essencial”, especifica o psicólogo.
Quais as consequências disso? “Aos poucos, a pessoa que está sendo abusada começa a internalizar que não sabe fazer escolhas ou que precisa diminuir seu círculo de amizades – afinal de contas, meu namorado ou minha namorada é o suficiente para mim. Por que devo me preocupar em ter amigos sendo que essa pessoa, que me ama, me provê tudo o que preciso? A pessoa acaba entrando num ciclo de pensamentos como esses”, conta Vieira.
“Quando esse ciclo se instaura, você deixa de ser quem você é. Sua vida passa a ser uma extensão da vida do outro. Você gosta do que o outro gosta, você faz o que o outro quer que você faça”, explica o psicólogo. “Isso é complicado, porque se acontece algo que não é do agrado da outra pessoa, ela insulta você, porque a culpa é sua. Quando a pessoa vitimizada consegue dar indícios de autonomia, de escolha própria e de pensar com a própria cabeça, a outra pessoa se magoa, brigando ou se fazendo de vítima”.
Cedendo e aprendendo
É muito importante que cada um saiba determinar o que é importante para si e que esse espaço seja respeitado, para que cada um se desenvolva ao longo da relação com autonomia, liberdade e fidelidade à própria identidade. Isso é fundamental também para que se determine o campo daquilo que não é essencial e que, portanto, pode ser objeto de concessões. Afinal, a identidade não é algo fechado em si mesmo, mas está em relação com a alteridade – com o relacionamento com o outro.
“A verdade é que se relacionar não é fácil, é conflitante. Relacionar-se gera angústias”, afirma Mariana. “Um relacionamento aponta para a alteridade e, ao longo dele, os ideais de quem pensamos que somos – e de quem pensamos que o outro é – acabam se quebrando. O parceiro ou a parceira aponta comportamentos, defeitos ou incômodos que acabam ferindo a ideia narcísica que criamos de nós mesmos”.
Quando conseguimos olhar com serenidade e discernimento para os comportamentos do outro que me incomodam ou para os meus comportamentos que incomodam o outro – desde que não estejamos falando de atitudes tóxicas –, abre-se uma oportunidade. “Nessa quebra, nesse desencanto, há a possibilidade de olhar para o relacionamento, mutuamente, mas também de dedicar-se ao autoconhecimento, porque estar numa relação é, nesse espelho constante do outro, mergulhar e trabalhar em si mesmo”, orienta a psicóloga.
É aí que entra a disposição para tolerar os comportamentos do outro que não invadem a nossa esfera do que é essencial, mas que mesmo assim nos incomodam um pouquinho. “A diferença é parte fundamental de um relacionamento”, recorda Mariana. “Sem olhar para si e para o outro, contudo, não enxergamos essas singularidades – singularidades que, muitas vezes, são vistas como nocivas, mas que, uma vez analisadas, transformam-se apenas em outras formas de viver junto, de conviver”.