Muitas vezes nem nos damos conta, mas carregamos conosco concepções próprias sobre várias realidades. Quando interagimos com nossos filhos, existe no nosso pano de fundo uma concepção do que seja a maternidade ou a paternidade. Na nossa rotina em nosso emprego, existe uma concepção do que seja o trabalho. E também no campo da vida sexual, agimos segundo determinado modo de ver a sexualidade, ainda que não reflitamos sobre isso.
“A sexualidade não diz respeito somente à relação sexual, ao prazer genital, mas à própria forma do sujeito enxergar um conjunto de aspectos que têm relação com o próprio corpo e com a sua identidade”, explica a psicóloga Mariana Pieruccini. “Quando a criança começa a especular sobre de onde vêm os bebês, ela já está se perguntando sobre a sexualidade, assim como quando se mostra curiosa a respeito das diferenças anatômicas entre meninos e meninas”.
Essa visão é formada ao longo de nosso desenvolvimento sob a influência da família, de amigos, da cultura local, da escola, da religião e dos meios de comunicação. Dependendo dos contornos que adquire, essa concepção da sexualidade – e a concepção que o nosso parceiro tem dela – pode nos levar tanto a experiências positivas quanto a experiências negativas no casamento.
“É importante estar com alguém em quem se confie e ter a cumplicidade para dialogar sobre isso tudo em todas as fases do relacionamento, partilhando reflexões e encontrando acordos”, afirma o psicólogo Gabriel Resgala. “Se a forma de enxergar a sexualidade encontra muita diferença entre o casal, isso pode ser um aspecto importante demais para ser ignorado”.
Repressão e negatividade
Diversos fatores podem nos influenciar a enxergar a sexualidade como se ela se tratasse de algo negativo. Experiências próprias ou de pessoas próximas a nós e determinadas concepções morais ou religiosas podem nos fazer sentir vergonha ou repulsa pelo contato sexual. E se não se busca ajuda para resolver isso, é evidente que o impacto no relacionamento como casal será enorme.
“Por um lado, a simples repressão dos desejos pode gerar uma vida sexual insatisfatória, insossa, sem afeto. É comum observarmos jovens que, devido a experiências pessoais ou a influências religiosas, familiares ou culturais, desenvolveram uma visão bastante negativa do sexo durante a adolescência, e depois de casados não conseguem se relacionar sexualmente com o cônjuge de forma saudável, gerando vários conflitos e até separações”, conta Resgala.
Vale atentar ao fato de que essas concepções muitas vezes ficam implícitas e não emergem facilmente. É possível até mesmo que alguém julgue manter determinada visão da sexualidade, mas não a tenha assimilado a ponto de realmente agir e reagir dessa maneira. Assim, uma pessoa pode até reconhecer a sexualidade como algo bom, mas na prática se bloqueia e não consegue lidar bem nem com o próprio corpo nem no relacionamento com o outro.
“É preciso ter em mente que experiências ou influências sexuais, sobretudo na infância e adolescência, podem nos marcar de maneira bastante profunda, tendo consequências bem duradouras”, explica o psicólogo. “Nesse caso, não se deve ter medo ou pudor de analisá-las, reconhecê-las e, se for o caso, procurar ajuda para reencontrar o equilíbrio necessário a uma satisfação plena nesse aspecto”.
Pura autossatisfação
Essa mesma falta de sincronização entre o que julgamos acreditar e o que efetivamente vivemos pode se dar no sentido contrário – ou seja, podemos dizer, até com sinceridade, que estipulamos determinadas regras para a vida sexual, mas na verdade a vivermos de uma maneira um tanto desenfreada. Não ser capaz de regular a própria atividade sexual – acreditando que é isso mesmo que deve ser feito ou não – também pode trazer consequências negativas para a experiência da sexualidade.
A influência dos meios de comunicação, de experiências pessoais ou familiares, de algumas noções de moralidade e até mesmo de uma cultura marcada pelo imediatismo como a atual podem fazer com que idealizemos a vida sexual como uma ferramenta que está sempre a serviço da pura e simples satisfação dos nossos desejos, a despeito de um relacionamento respeitoso – e que, assim, expresse o amor entre o casal – com o outro.
No fim das contas, se vivemos segundo essa concepção, muitos riscos podem vir à tona. Será muito fácil desrespeitar gravemente o nosso cônjuge, impondo – de forma aberta ou sutil – uma relação sexual quando ele não quer. E é aí que se abrem as portas para o abuso, mesmo em sentido estrito, para a manipulação e para a traição, sem contar a indiferença em relação à experiência de prazer do outro.
“Se a simples repressão do sexo nos torna doentes, o oposto – ou seja, a escassez de limites – não seria também verdadeiro?”, questiona Resgala. “A sociedade parece estar refletindo mais sobre isso – prova é que a liberalização sexual que se via na TV dos anos 80 e 90, em horário nobre, hoje receberia críticas até dos setores mais progressistas. A pornografia cada vez mais recebe fortes críticas e a definição de estupro se ampliou bastante, passando a significar qualquer atitude não consentida por uma das partes. Ou seja, foi-se tomando consciência de que estabelecer alguns limites à sexualidade é, sim, bastante necessário”.
Diálogo, diálogo e diálogo
“Se os ideais de como se enxerga a sexualidade impactam negativamente a vida do casal, tornando a relação difícil ou até mesmo impossível, a questão paira sobre o que cada um espera”, diz Mariana. “Quais são os pensamentos e as fantasias do casal a respeito da sexualidade? Há uma ideia de medo, dor ou insegurança? Há vergonha de sentir desejo?” O caminho, segundo a psicóloga, é o diálogo aberto entre o casal.
No entanto, Mariana nota: “Mesmo quando não se fala, também se está falando algo, já que a sexualidade está sempre presente. Se o falar incomoda uma das partes, é preciso se questionar por quê. Há uma timidez, uma inibição, a ideia de que algo está errado?”
A vida sexual, no fim das contas, é sempre comunicação, ainda que nada se diga. É melhor que se diga, porque sentimos a necessidade de esclarecer o que sentimos, mas ainda assim é todo o nosso corpo que se comunica – e isso se dá com uma intensidade específica na relação sexual. É ali que acaba sendo comunicada a nossa dificuldade em lidar com o fato de sermos corpos ou a nossa voracidade autorreferencial que atropela o desejo do outro – ou a unidade, o carinho, a atração e o vigor que marcam o amor de um pelo outro.