Ubi Petrus, ibi Ecclesia, sed ubi Ecclesia, ibi zizania.
Nesta breve investigação historiográfica quero apenas registrar fatos que nos apontam que o comunismo não penetrou na Igreja Católica unicamente pela teologia da libertação, mas por canais muito mais sutis e, até agora, não conhecidos pelo grande público.
A teologia da libertação, da maneira como a conhecemos hoje, surgiu em 1968 com o famoso e pernicioso livro de Gustavo Gutierrez, teólogo peruano, sob as orientações do serviço secreto russo por ordem de Khrushchev, sucessor de Stálin (leia mais aqui). Não cabe neste artigo explicar o como e os porquês de ele ter escrito a obra fundadora da coisa. Cabe, no entanto, constatar que a infiltração do ideário revolucionário na Igreja Católica brasileira ocorre, pelo menos, desde os anos cinquenta, portanto, quase vinte anos antes.
Estou lendo a biografia de Frei Betto, escrita por Evanize Sydow e Américo Freire, prefaciada por ninguém mais, ninguém menos que Fidel Castro, El Commandante. Por ela conhecemos as duas principais formações que levaram Betto a ser um revolucionário comunista: a JEC (Juventude Estudantil Católica), criada em Belo Horizonte por frei Mateus, um dos principais mentores de Betto na sua juventude junto com frei Chico. A JEC era fruto da Ação Católica, que existia desde os anos trinta e foi utilizada por dom Hélder Câmara, o arcebispo vermelho de Recife, como plataforma para lançar o projeto da CNBB em 1952. O outro meio potente e decisivo foi o Convento da Serra (MG), onde Betto entrou para a Ordem dos dominicanos em 1965. Tanto na JEC como no Convento, frei Mateus, mais que frei Chico, tinha grande influência. A partir do Convento nasceu a JEC. E, nela, Betto, segundo sua biografia, “começou assim a desenvolver habilidades que iriam marcar sua personalidade e trajetória profissional, entre as quais, uma disciplina rígida aliada à desenvoltura no trato e na interlocução com personalidades de distintas posições sociais e de poder, o que lhe dava autoridade moral e capacidade para o desenvolvimento do trabalho de articulação e mediação política”. Nesta última oração vemos o centro da ação de Frei Betto na Igreja e na política revolucionária.
Voltemos aos religiosos.
Quem afinal é frei Chico? Segundo o relato biográfico, “frei Chico nasceu em 1929 no interior do Ceará. Chamava-se Áureo Pereira de Araújo. […] Em 1952 transferira-se para o Convento das Perdizes para integrar a Ordem dos Pregadores.” Um ano depois seguiu para “o célebre Convento de Saint Maximin, na França, com vistas a completar seus estudos de teologia. Com ele estudaram alguns dos mais importantes quadros intelectuais da Ordem no Brasil, como os frades Bernardo Catão, Luiz Gorgulho e Carlos Josaphat.” Os três frades tornaram-se teólogos progressistas e, inclusive, dois deles – Catão e Gorgulho – integraram a ALN, Ação Libertadora Nacional, comandada por Marighella, o famigerado terrorista comunista. E não é apenas isto: largaram o hábito monástico e ambos se casaram. O último, Carlos Josaphat, permaneceu na Ordem, não sem produzir primeiro uma vasta obra teológica permeada de esquerdismos.
Cabe citar também mais duas personagens importantes: Dom Tomás Balduíno e padre Romeo Dale. O primeiro foi grande ator da esquerda eclesiástica, ajudou a fundar a Comissão Pastoral da Terra (que fundou o MST, em 1972, e é parte da CNBB) e foi grande parceiro de Dom Pedro Casaldáliga, um dos bispos mais comunistas que este país já viu, responsável, de 1971 a 2005, pela prelazia de São Félix do Araguaia. Foi substituído por Dom Leonardo Ulrich Steiner, atual secretário-geral da CNBB, de quem também foi mentor.
O segundo, padre Romeo Dale estudou no mosteiro de La Tourette, sede do Economia e Humanismo, e compôs o grupo de padres de esquerda do Convento de Perdizes. O padre Dale também havia estudado no convento Saint Maximin, na França. Foi um dos mais ativos líderes da Ação Universitária Católica (AUC) e da Juventude Universitária Católica (na qual Frei Betto também atuou), e responsável, sob os auspícios de Dom Paulo Evaristo Arns, pela edição do jornal O São Paulo. Dale foi perito do Vaticano na formulação do Concílio Vaticano II, e ainda redator da revista do Serviço de Documentação (SEDOC) e assessor da CNBB, além de ter ajudado a criar o Serviço Nacional de Opinião Pública, ligado à Conferência. (Della Cava & Montero 1989:25).
O outro frei responsável por influenciar não só Frei Betto, mas toda uma horda de frades dominicanos foi frei Mateus Rocha. Nascido em 1923, em Minas Gerais, contam os biógrafos de Betto, “ingressou para a Ordem de São Domingos em 1945. […] Fez seus estudos de teologia em Saint Maximin, tendo sido ordenado padre ainda na França, em 1951. Segundo Eliseu Lopes, seu ex-companheiro de Ordem:
“O que mais marcou frei Mateus foram os meses passados em Paris, antes de regressar ao Brasil. Pôde conviver com dois grandes mestres: Congar e Chenu, não só escritores consagrados e teólogos de renome mundial, mas apóstolos da renovação. Contra junto à juventude, e Chenu no meio operário. O contato com eles deixou-lhe uma impressão profunda e definitiva.”
Frei Mateus, em 1952, retorna então ao Brasil para ingressar no Convento da Serra, onde estava frei Chico. Betto ingressaria somente treze anos mais tarde. No Convento, frei Mateus fundou a Juventude Estudantil Católica e “ajudou a forjar uma nova geração de jovens cristãos impregnada pela sua presença e pela idéia de revolução.” Não bastasse sua influência em dezenas de noviços, em 1956, aos 33 anos, “frei Mateus foi eleito para assumir a direção dos dominicanos brasileiros” e dois foram seus principais eixos de atuação: consolidar a presença dominicana no país e o segundo passo a citar diretamente da biografia de Betto, dada a relevância, gravidade e exatidão:
“Avançar no trabalho pastoral junto aos jovens e à juventude. À época, o principal propósito da Província era a formação de uma elite intelectual capaz de levar adiante seu projeto histórico renovador e comprometidos com transformações sociais. Algum tempo depois, no começo dos anos 1960, ainda sob influência de frei Mateus, a Província iria radicalizar suas posições, ingressando com entusiasmo na então chamada Revolução Brasileira”, referência às milícias intelectuais e armadas contra o Regime Militar e pela implantação de um regime socialista no país.
Elenquemos: Frei Mateus, Frei Chico, Bernardo Catão (ex-frei), Luiz Gorgulho (ex-frei), Frei Carlos Josaphat, Dom Tomás Balduíno e padre Romeo Dale. Todos foram ao Conveto Saint Maximin na França, antes de 1968, e retornaram encharcados, para nunca mais retornar, de idéias comunistas. Por falta de tempo e ausência de fontes de pesquisa adequadas, não irei explicar, por ora, o que havia de tão especial no Convento francês. É assunto para outro artigo.
Temos, graças à Nossa Senhora, o conhecimento de dois teólogos franceses muito lidos à época e que influenciaram conventos brasileiros e franceses: Lebret e Emmanuel Mounier.
Lebret foi um dos grandes responsáveis pela divulgação do movimento Economia e Humanismo, “cuja finalidade era a construção de uma civilização fraterna que superasse o capitalismo e o comunismo. Embora rejeitasse o comunismo, Lebret incorporava alguns preceitos do marxismo quando punha em xeque a ordem econômica capitalista, vista como injusta e contraditória.” Seus escritos, tenha ele assim desejado ou não, retiraram dos intelectuais e estudantes católicos a saudável advertência de não tentar casar cristianismo com comunismo. Seus livros já circulavam no Brasil em 1952 e serviram de guia para a JEC e a JUC. Em Princípios para a ação, diz Lebret:
“Devemos acolher antes de tudo em nosso coração a miséria do povo. […] Muita gente tem dó dele, algumas pessoas o auxiliam, mas ninguém se preocupa com as causas profundas dessa miséria. […] Colocar em nosso coração e sobre nossos ombros a miséria do povo; não com a atitude de um estranho, mas como uma criatura entre outras criaturas, com outras criaturas; arrastando-as para a luta comum, atirando-as ao combate pela própria salvação, ajudando-as a se elevarem na realização de um grande esforço. […] O contrário da miséria: não a abundância, mas valor. O principal não é produzir riquezas, mas valorizar o homem, a humanidade, o universo.”
Pode até ser que Lebret abominasse sentimental e interiormente o comunismo por suas desgraças e descrédito público, mas sua óbvia inépcia mental produziu nele um escotoma que o impediu de perceber que suas idéias, se aceitas integralmente, acabariam causando o efeito inverso: uma aproximação gentil e apaixonante com a hidra de Marx. Pode até ser que tivesse boa vontade, mas faltou perceber que não se resolve “as causas profundas dessa miséria” dos pobres sem produção de riquezas. Como Lebret imaginava que a sociedade daria condições a todos, socializando os bens ou produzindo mais riquezas e ampliando oportunidades reais?
Portanto, não fôra necessário um Gutierrez da vida para contaminar a Igreja com o ideário comunista em 1968. Bastou que Lebret emprenhasse as mentes com a idéia da “construção de uma civilização fraterna que superasse o capitalismo e o comunismo”, em outras palavras, de um mundo melhor. Eis aí o cerne da mentalidade revolucionária, o centro da confusão e a fórmula para enlouquecer o mundo.
Outra criatura teológica francesa bastante lida por intelectuais e estudantes brasileiros nas décadas de cinquenta e sessenta foi Emmanuel Mounier (1905-1950). Nas palavras de Michel Löwy, pensador marxista brasileiro radicado na França, o que o impressionou, acima de tudo, foi “a sua crítica radical ao capitalismo como sistema fundado no anonimato do mercado, a negação da personalidade e o ‘imperialismo do dinheiro’; uma crítica ética e religiosa que leva à busca de uma alternativa, o socialismo personalista, que reconhece que tem ‘muito a tomar do marxismo’”. Mounier fundou a famosa revista personalista francesa Esprit, cuja palavra de ordem era “ruptura com a ordem estabelecida” na busca de um socialismo personalista. Ei-la novamente: o miolo do caos.
Está claro que ambos Lebret e Mounier influenciaram grandemente aquela geração de intelectuais e estudantes católicos, não porque foram comunistas de quatro costados, mas porque carregavam em si a sutil e tentadora idéia de um mundo melhor, de ruptura com a ordem estabelecida. O Convento Saint Maximin certamente teve um papel importante na formação daquela geração dos anos cinquenta e, consequentemente, na posterior, a de Frei Betto.
Ficam aqui os fatos registrados, expostos, aguardando ulteriores investigações.
____________________________________
DELLA CAVA, Ralph & MONTERO, Paula. (1989), E o verbo se faz imagem: igreja católica e meios de comunicação no Brasil. (1962-1989). São Paulo: Vozes.
FREIRE, Américo e SYDOW, Evanize. Frei Betto: biografia. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp.48-54.
LOPES, Eliseu. O itinerário de frei Mateus. In: POLETTO, Ivo (Org.). Frei Mateus Rocha: um homem apaixonado pelo absoluto. São Paulo: Edições Loyola, 2003, pp.36-7.