Há alguns meses ouvi, pela primeira vez, uma crítica ao Leandro Karnal. Foi o meu amigo Hassan quem disse que este professor era nada mais que um sofista, tendo em vista que a sua ampla retórica só fazia esconder argumentos tautológicos. Como o único contato que tive com este senhor foi há anos, através de uma palestra sobre a “customização da fé”, em que basicamente falava sobre religião e modernidade líquida, não entendi muito bem o que o Hassan queria dizer. A palestra que eu ouvi poderia ter sido mais curta? Com toda certeza. Mas, a meu ver, talvez aquele movimento arrastado do orador se fizesse em vistas do público, que provavelmente não tinha leitura de Bauman e da discussão sobre a pós-modernidade.
O tempo passou e hoje, no meu feed do Youtube, apareceu um excerto deste professor. Não tinha a ver com a religião. Desta vez o seu argumento, que já se deixava entrever pelo título, era o de que as pessoas inteligentes, por serem críticas em relação ao mundo que está à sua volta, tendem a se sentir sós num mundo em que as pessoas são superficiais. De início, utiliza como modelo padrão de inteligência aqueles que consideramos como “gênio” (embora ninguém saiba definir exatamente o que essa palavra significa), devido ao seu potencial criativo. Após, desdobra esse enlace criativo do gênio e o transfere para todas as pessoas que, mesmo não sendo geniais, são, em algum aspecto, produtoras de ideias (o seu papel, como professor, não é o de “criar” ideias novas no mundo, mas “criá-las” na mente dos alunos). O inteligente, por estar sempre mais atento às altas esferas do espírito, tem sempre uma expectativa maior em suas conversas e planos do que as pessoas mais simples, que se contentam com a mediocridade. Como os inteligentes estão em menor número, estão mais propensos à solidão.
Por este vídeo foi possível compreender que meu amigo Hassan estava equivocado. Karnal não é um homem de tautologias, mas de pressupostos ruins. Um deles é a divisão da sociedade entre os “inteligentes” e os “simples”, como se os “inteligentes” fossem uma espécie de seita seleta dentro da sociedade. Dividir o mundo nessas duas classes não é constatar um fato existente, mas apenas admitir publicamente que se é preconceituoso. Excetuando meu sobrinho recém-nascido, por motivos óbvios, nunca conversei com uma pessoa que não tenha uma impressão do mundo, uma noção de amor, um medo, um sonho… Nunca conversei com alguém que não tenha refletido sobre o que é a morte, sobre qual é o seu propósito no mundo. O que muda, certamente, é o vocabulário e as estruturas gramaticais que umas ou outras pessoas utilizam, e principalmente o tempo que se dedicaram a pensar sobre elas. Certamente os professores, escritores e artistas gastam mais tempo refletindo sobre esses assuntos do que outros profissionais. Daí a considerar qualquer pessoa superficial há um abismo. Evidentemente, o mundo está repleto de conversas fáticas: afinal de contas, a nossa cosmovisão é algo muito íntimo para se propalar aos quatro ventos. Uma pessoa que comenta sobre a temperatura do dia não é necessariamente estúpida: alguém que espera conversar com o vizinho sobre Drummond dentro do elevador certamente tem mais chance de adquirir este título.
Muito unido a este tipo de divisão social está o conceito de inteligência enquanto “crítica”. Vivemos dizendo por aí que as pessoas inteligentes são “críticas” e que o papel do professor é desenvolver o raciocínio “crítico”. Isso quando não se reduz a crítica à política e se vê apenas os que desenvolvem seus trabalhos nas ditas “humanidades” como os verdadeiros “críticos”. Ora, é bem certo que não apenas as humanidades são críticas, como todos os campos de conhecimento, afinal de contas um especialista em aves precisa de “crítica” para diferenciar um Sabiá de um João de Barro – e não chamar tudo de “passarinho”. Tanto mais se constata que a crítica não é um fim em si mesmo, mas um instrumento do intelecto que, como já dizia o bom e velho Boécio, procede operações de divisão e de união. A crítica é proveniente da comparação entre dois modelos; quando alguém critica algo, é porque está comparando com outro modelo. Cabe à inteligência, pois, compreender, antes de tudo, o que é esse modelo, quais são as suas características centrais, o que o revela… Neste processo, se faz comparações e se estabelecem críticas, mas também se adquire um conteúdo.
Faço essa digressão para insistir na noção central de que a inteligência não se resume à crítica, mas também age num sentido positivo, na compreensão de uma ideia. Trata-se de um exercício empático de alto nível, e que com ele traz comunhão. Muitas vezes o inteligente se põe em momentos de solidão para poder raciocinar com a devida tranquilidade, mas o inteligente nunca se limita a tal momento, haja vista que a inteligência é um serviço que se presta a uma comunidade – comunidade que o formou, o nutre, o respeita. O inteligente se relaciona melhor com as pessoas, porque está acostumado a ouvi-las, a fazer ecoar em si aquilo que a outra pessoa tem em seu coração. Além disso, a parte crítica que certamente há na inteligência, ajuda a distinguir aquilo que há de mais valioso e amoroso no mundo, e saber isso nos torna ainda mais felizes. Aliás, isso é consequência natural do nosso ser; se a pessoa humana é relação, então todos os âmbitos humanos, como a alimentação, a sexualidade, a inteligência, a religião, a política, etc., serão relacionais. Por tudo isso, nos tornamos mais humanos. Pelo egoísmo, negamos tudo isso e somos cada dia mais solitários. Inteligência tem a ver com serviço, alteridade e contemplação. O que torna a pessoa solitária é a negação do intelecto.