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Cluny, na França, foi uma das maiores abadias da história da Igreja. Antes da construção da atual Basílica de São Pedro, sua basílica foi a maior igreja do mundo e chegou a ser o lar de 10 mil monges simultaneamente. Desativada desde a Revolução Francesa, a abadia hoje fica a apenas 12 minutos de carro de uma outra comunidade de irmãos fundada 1030 anos depois, que se tornou conhecida entre cristãos do mundo todo durante o século XX. Como Cluny, a comunidade é conhecida pelo nome da cidade em que está sediada: Taizé.

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A história de Taizé começou em plena II Guerra Mundial, quando o suíço Roger Schütz resolveu fazer o mesmo que a sua avó fazia durante a I Guerra: dedicar-se a acolher feridos e refugiados. Nascido em 1915, o filho de um pastor calvinista seguiu os passos do pai e estudou letras e teologia. Em 1940, depois de pedalar por 170 quilômetros desde Genebra, encontrou no vilarejo de Taizé, bem perto da fronteira com a zona da França ocupada pelas tropas alemãs, uma casinha barata e apropriada para receber refugiados, sobretudo judeus. Foi o que fez durante dois anos, ao lado de sua irmã Geneviève.

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Eventualmente a Gestapo ficou sabendo de suas atividades e os dois precisaram fugir para Genebra. Em 1944, porém, Roger voltou a Taizé e deu início a uma comunidade de estilo monástico, aberta a homens cristãos de qualquer denominação que quisessem viver em comunidade, de forma simples, comprometidos com o celibato e em oração. A pequena comunidade tornou-se, nos anos seguintes, sem qualquer intenção de seus membros, meta de peregrinação de milhares de jovens do mundo todo e um verdadeiro luzeiro no caminho ecumênico das igrejas cristãs.

Testemunho

Roger morreu aos 90 anos de um modo trágico – foi esfaqueado por uma mulher romena com problemas mentais, durante a oração da noite em Taizé, em 16 de agosto de 2005, diante de 2,5 mil pessoas. A celebração de suas exéquias foram o testemunho do caminho de unidade que ele constantemente promoveu e viveu com todas as fibras do seu ser: na eucaristia presidida pelo cardeal Walter Kasper, então presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, a primeira leitura foi lida por um bispo anglicano, a segunda por um ministro reformado e um luterano e o rito da encomendação foi presidido por ministros ortodoxos.

Mas para se ter uma ideia ainda mais concreta do testemunho de Roger, basta ouvir o testemunho de seu sucessor, o irmão Alois: “Nós o vimos regressar de uma viagem a Calcutá com um bebê ao colo, uma menina que a Madre Teresa lhe tinha confiado com a esperança de que ela pudesse sobreviver na Europa, o que de fato aconteceu. Nós o vimos acolher e instalar no vilarejo de Taizé viúvas vietnamitas com vários filhos, que ele tinha encontrado ao visitar um campo de refugiados na Tailândia”, conta o monge. Santa Teresa de Calcutá, de fato, foi uma amiga próxima de Roger – os dois até mesmo escreveram três livros juntos.

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“Muitos jovens tinham a imagem dele como um homem que estava sempre disponível para os escutar, todas as noites depois da oração, se fosse preciso durante horas. E quando o cansaço se tornou demasiado grande para que ele conseguisse escutar cada um, mesmo assim ele permanecia na igreja e dava a todos os que se aproximavam dele uma simples bênção, pondo a sua mão na testa deles”, relata Alois, acrescentando que a crescente convicção de Roger de que “Deus só pode amar” encontrava eco em seu hábito de sempre evitar palavras duras e julgamentos definitivos.

“Ele sabia que um dos maiores obstáculos era a imagem de um Deus considerado um juiz severo que provoca o medo. Houve uma intuição que se tornou nele cada vez mais clara e ele fazia todo o possível para a transmitir com a sua própria vida: Deus só pode amar. Ainda recentemente, o teólogo ortodoxo Olivier Clément recordava que esta insistência do irmão Roger sobre o amor de Deus marcou o fim de uma época onde, nas diferentes confissões cristãs, se receava um Deus que castiga”, diz Alois.

Roger e os papas

No dia seguinte à morte de Roger, durante a audiência habitual das quartas-feiras na Praça de São Pedro, o Papa Bento XVI recordou o fundador de Taizé. “Hoje de manhã recebi uma notícia muito triste, dramática”, disse. O hoje papa emérito contou que no mesmo dia havia recebido uma carta do irmão Roger, assegurando a comunhão com o papa e com os participantes da Jornada Mundial da Juventude daquele ano, que se realizou em Colônia dias depois.

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“Nessa carta ele me escreveu que tem o desejo de vir o quanto antes a Roma para se encontrar comigo e para me dizer que ‘a nossa comunidade de Taizé deseja caminhar em comunhão com o Santo Padre’. Depois, escreveu pelo próprio punho: ‘Santo Padre, asseguro-lhe os meus sentimentos de profunda comunhão’”, afirmou Bento XVI, acrescentando que o irmão Roger “está nas mãos da bondade eterna e do amor eterno, pois chegou à alegria eterna”.

Bento voltou a recordar Roger durante a Jornada Mundial da Juventude, dias depois, chamando-o de “pioneiro da unidade”. “Conhecia-o pessoalmente desde há muito tempo e mantinha com ele uma relação pessoal de amizade”, disse. “Agora visita-nos do alto e fala-nos. Penso que deveríamos ouvi-lo, ouvir a partir de dentro o seu ecumenismo vivido espiritualmente e deixar-nos conduzir pelo seu testemunho de um ecumenismo interiorizado e espiritualizado”.

O Papa Bento foi ainda o anfitrião de um Encontro Europeu de Jovens promovido pela Comunidade de Taizé em 2012 em Roma. “Testemunha incansável do Evangelho da paz e da reconciliação, animado pelo fogo de um ecumenismo da santidade, o irmão Roger encorajou quantos passaram por Taizé a tornarem-se pesquisadores de comunhão”, afirmou na ocasião. São João Paulo II também recebeu três edições desse encontro em Roma e chegou até mesmo a visitar Taizé, em 1986 – já tinha estado na comunidade duas vezes antes da eleição como papa, em 1964 e 1968. “Passa-se por Taizé como se passa por uma fonte”, disse, em uma frase que marcou a história da comunidade.

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“Sei bem que, na sua vocação característica, original e até mesmo em certo sentido provisória, a comunidade de vocês pode suscitar surpresa e despertar incompreensão e suspeita”, comentou ainda João Paulo II durante a visita. “Mas por causa da paixão de vocês pela reconciliação de todos os cristãos em uma comunhão plena, por causa do amor de vocês pela Igreja, vocês saberão continuar – estou certo disso – a estar disponíveis à vontade do Senhor”. No ano passado, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, também visitou Taizé, pela primeira vez – Roger tinha visitado seu predecessor, Atenágoras, já em 1962.

O Concílio Vaticano II

A relação de Taizé com o papado data de seus primeiros anos. São João XXIII recebeu o irmão Roger no Vaticano poucos dias depois de ser eleito papa, em 1958. A sintonia foi imediata, a tal ponto que Roger repetiria várias vezes que “o fundador de Taizé é João XXIII”. Foi, aliás, o próprio Angelo Roncalli, quando era núncio apostólico em Paris, que assinou a autorização para que a pequena comunidade começasse a se reunir em oração na pequena igreja católica do vilarejo de Taizé, em 1948. Roger foi recebido anualmente por João XXIII, que chamava Taizé de “uma pequena primavera”, e seus sucessores e o mesmo passou a ocorrer quando o irmão Alois o sucedeu.

Segundo o cardeal François Marty, arcebispo de Paris entre 1968 e 1981, foi o encontro com Roger e o irmão Max, que o acompanhava, que deu ao Papa João a coragem de convidar observadores não-católicos ao Concílio Vaticano II. De fato, Roger e Max se fizeram presentes em todas as sessões da assembleia conciliar. Para o irmão Alois, sucessor de Roger como prior da comunidade, “o que se vive hoje em Taizé como comunidade ecumênica seria impensável sem a realidade do concílio”.

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Nos anos do concílio, Roger se transferiu com um punhado de irmãos para um apartamento em Roma em que se recriou o ambiente de Taizé de oração e acolhida. Teólogos como Yves Congar e Henri de Lubac e bispos como Hélder Câmara narram em seus diários as visitas feitas ao pequeno apartamento de quatro cômodos. A proximidade com Dom Hélder tornou possível, inclusive, que fosse fundada no Brasil em 1966 a primeira comunidade permanente de Taizé fora do vilarejo francês, hoje localizada em Alagoinhas, na Bahia.

Católico ou protestante?

A situação confessional do irmão Roger parece, à primeira vista, um enigma. Nascido, formado e ordenado pastor no protestantismo calvinista, cuja tradição nunca afirmou ter abandonado, não é nenhum segredo que ele comungava diariamente nas missas celebradas em Taizé. No funeral de São João Paulo II, recebeu a comunhão do próprio Joseph Ratzinger, que presidia a celebração – como havia recebido outras vezes das mãos de São João Paulo II.

É claro, porém, o modo como Roger descrevia o seu próprio caminho, como disse publicamente a São João Paulo II em um encontro na Basílica de São Pedro: “Encontrei a minha identidade de cristão reconciliando em mim mesmo a fé das minhas origens com o mistério da fé católica, sem ruptura de comunhão com quem quer que seja”. Por isso, Roger considerava inapropriado o uso de termos como “conversão” ou “adesão formal” para descrever seu caminho rumo à unidade católica.

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O cardeal Kasper comentava que “a fé do prior de Taizé foi progressivamente se enriquecendo com o patrimônio de fé da Igreja católica. Segundo o seu próprio testemunho, é justamente referindo-se ao mistério da fé católica que ele compreendia certos dados da fé, como o papel da Virgem Maria na história da salvação, a presença real de Cristo nos dons eucarísticos e o ministério apostólico na Igreja, inclusive o ministério de unidade exercido pelo bispo de Roma”. Para Kasper, “poucas pessoas da nossa geração encarnaram com tal transparência o rosto manso e humilde de Jesus Cristo”. Ele tem razão.

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