O Papa Francisco fez recentemente um discurso por ocasião dos 25 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica. Em um texto memorável, Francisco discorreu sobre a noção de desenvolvimento da doutrina da Igreja, que é uma expressão de fidelidade à Palavra de Deus e à Tradição. E fez uma declaração importante: pediu que o Catecismo expresse claramente que a pena de morte é em si mesma contrária ao Evangelho.
O pedido de Francisco é mais um passo em um caminho que já dura cinquenta anos, ao longo dos quais o magistério pontifício tomou cada vez mais consciência de que a pena de morte consiste em um mal. Um primeiro passo decisivo foi tomado pelo Beato Paulo VI em 1969. Ao revisar a Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano, de 1929, o papa Paulo exclui um trecho que previa a pena capital para quem tentasse mantar o papa.
Em várias ocasiões, Paulo VI suplicou a diversos países que não executassem seus prisioneiros. Países tão diferentes quanto a União Soviética, em 1971, e a Espanha, em 1975, ignoraram os apelos do papa.
Quando o Catecismo foi publicado, em 1992, o texto optou por manter o ensinamento oficial de que o recurso à pena de morte é uma possibilidade, “se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor” e “desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado” (CIC 2267).
Mas fazia a ressalva: “Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana. ”
Em sua edição típica, de 1995, o Catecismo ainda acrescentou: “Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’”.
São João Paulo II
O último trecho remete à encíclica Evangelium Vitae, de São João Paulo II. Nela, o papa polonês colocou a questão no horizonte de “uma justiça penal que seja cada vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o homem e a sociedade” (EV 56). Ainda, elencou como um “sinal de esperança” “a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte – mesmo vista só como instrumento de ‘legítima defesa’ social” (EV 27).
João Paulo II, assim como Paulo VI, intercedeu diversas vezes por condenados à morte. Teve sucesso em 1999, quando o governador do Missouri, Mel Carnahan, comutou a pena de morte de Darrell Mease em resposta ao apelo do papa, que visitava St. Louis. Na ocasião, João Paulo II disse que a pena de morte é “cruel e inútil” e pediu a sua abolição. Com frequência, ele citava o tema em discursos a diplomatas e parlamentares.
Também em 1999, na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, ele citou a pena de morte ao lado de problemas como o aborto e a eutanásia, como parte de uma “cultura da morte” e de “uma sociedade dominada pelos poderosos”. No fim do mesmo ano, João Paulo II pediu novamente que os líderes do mundo todo chegassem a “um consenso internacional pela abolição da pena de morte”, promovendo “formas mais maduras de respeito à vida e à dignidade de cada pessoa” (EAm 63).
Bento XVI
Nos últimos anos do pontificado de São João Paulo II, quando a abolição da pena de morte se tornou um tema comum nos discursos do papa, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger, disse que o catolicismo estava testemunhando um “desenvolvimento” em sua doutrina sobre a pena de morte. Eleito papa em 2005, o próprio Ratzinger manteria essa postura.
Em 2008, Bento XVI disse estar “alegre” por “a Assembleia Geral das Nações Unidas ter adotado uma resolução convidando os Estados a instituir uma moratória sobre a aplicação da pena de morte e faço votos por que esta iniciativa estimule o debate público sobre o caráter sagrado da vida humana”. No ano seguinte, saudou o México por ter abolido a pena capital em 2005.
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Já em 2011, na exortação apostólica pós-sinodal Africae Munus, Bento chamou “a atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazer todo o possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital, bem como para a reforma do sistema penal a fim de que a dignidade humana do preso seja respeitada” (AM 83).
No mesmo ano, louvou a campanha da Comunidade de Santo Egídio contra a pena de morte, esperando que ela encorajasse “as iniciativas políticas e legislativas que estão sendo promovidas em um crescente número de países para eliminar a pena de morte e continuar o substancial progresso realizado na adequação da lei penal à dignidade humana dos prisioneiros”.
Guilhotina papal
Todo esse desenvolvimento já parecia muito distante da posição dos papas do século XIX, que mantiveram a pena de morte nos Estados Papais, por eles governados e que abrangiam boa parte do centro-norte da Itália. No Museu de Criminologia de Roma, é possível visitar uma lamentável testemunha daquele período: a guilhotina papal, um presente da França, usado entre 1816 e 1870.
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Quando se compara a posição do magistério pontifício em 1870 e a de João Paulo II e Bento XVI nos anos 2000, a diferença é evidente. O passo de Francisco é importante: explicita que a pena de morte é intrinsecamente contrária ao Evangelho – a reflexão dos papas já vinha caminhando nesse sentido, como quando o papa Bento disse que “a não-violência para os cristãos não é um mero comportamento tático, mas um modo de ser da pessoa”.
Mas, ainda que decisiva, a medida de Francisco não é um evento isolado, e sim o fruto de um caminho iniciado há muitas décadas. É, justamente, uma bela expressão do tema de seu discurso: “Não se pode conservar a doutrina sem fazê-la progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável, sem humilhar a ação do Espírito Santo”.
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